Mas esse espelho não nos reflecte. Ele vai, pelo contrário, detectar-nos a presença e fazer como fazem as células. Vai ingerir-nos.
Descanse, que não será tragado para o outro lado do espelho, como as personagens de Lewis Carroll. Estamos no domínio da metáfora, perante a escultura Absorption, uma peça diferente, feita a meias por um artista digital e um cientista.
A estrutura na fase de instalação, na galeria Adamastor Studios
A estrutura faz parte da exposição Presence, que está patente naquele espaço da capital até ao último dia deste mês. Depois irá para Boston, que é, afinal, a sua casa de partida neste jogo entre a arte e a ciência.
Foi lá, na Harvard Medical School e no Boston Children's Hospital, que Quintas teve uma residência, um corpo estranho num laboratório científico. Esteve por lá três semanas, em Março do ano passado. “Quando mostrei o meu trabalho eles perceberam logo alguns pontos de relação, porque nas minhas peças é frequente usar o mesmo processo que os cientistas usam para analisar e compreender as células”.
Como se tivesse também um microscópio, o artista gosta de analisar o que é invísivel nas coisas a olho nu: “É isso que eu faço com a escala do corpo. Uso sensores, câmaras 2D e 3D que recolhem e analisam a silhueta, o movimento, os gestos, e uso essa informação para criar sons, imagens, etc”.
Foi o que aconteceu com Absorption. Quintas desenvolveu um software associado a sensores, que vão, então, detectar a presença de pessoas na galeria e 'assimilá-las'. A obra foi pensada como um trabalho em desenvolvimento “que absorve a pessoa como se de um nutriente ou de um vírus se tratasse, e que se recorda de a ingerir, de forma muito semelhante ao que uma célula faz na vida real”, tal como acontece na endocitose, um processo que permite que as células absorvam material do meio envolvente (como nutrientes e vírus), acrescenta Tom Kirchhausen, em conversa por email com a Tabu. Ambos contaram, ainda, com a ajuda do designer Mário Dominguez, do Instituto Universitário da Maia (ISMAI).
Este cruzamento da arte e da ciência não é estranho a nenhum dos criadores. Quintas já tinha desenvolvido projectos em colaboração com o Instituto de Sistemas e Robótica, no Técnico, em 2007. Kirchhausen Já tinha trabalhado com Janet Iwasa, em 2008, com a qual criou um “filme molecular”, uma animação em 3D para visualizar processos moleculares. Já antes tinha desenvolvido um filme com a mesma técnica com Allison Bruce, uma especialista em gráficos computacionais de uma empresa, a Genentech, em 1999.
Quintas e Kirchhausen conheceram-se em 2013 num festival integrado na Trienal de Arquitectura de Lisboa. Bastou ao segundo interessar-se por um trabalho do primeiro e alguns (poucos) minutos de conversa para que uma “colaboração irresistível começasse”, recorda Kirchhausen.
Após muita conversa e riso, assumem os dois, o desafio foi superado por um momento eureka do artista português. Ao perceber o mecanismo celular que é a base da ideia da escultura, Quintas transpô-la para esta obra, que vai contemplar também um programa pedagógico para as famílias e, no encerramento, um livro e um documentário.
No fundo, a metáfora de Absorption vai mais além: “Hoje em dia utilizamos o computador e a internet, estamos sempre a emitir dados que vão para outro mundo, para a rede, que nós não conhecemos”, conclui Quintas. No fundo, somos como nutrientes – ou vírus – para células.