A pessoa que temos ao nosso lado

A primeira vez que gritei contra o Benfica e a favor dos meus filhos, num pavilhão da Luz com umas dezenas de pessoas, uma senhora não tirou os olhos de mim. Ao princípio, fiquei incomodado. Depois o jogo ocupou-me todo o espaço e dela me esqueci. No final interpelou-me sem sorrisos. Conhecia-me bem. Agradeci-lhe por…

O meu mais novo, Miguel, joga agora basquetebol no Benfica. O mundo e as suas voltas. Mas não deixei de pensar naquela senhora tão literal. Aliás, entristeço-me pelas pessoas que entendem o mundo assim. Não têm culpa, vivem com isso o melhor que sabem. Podem ser cultos, viajados, especialistas em ganhar ou explicar fracassos, mas o mundo para eles é o que existe, o preto e o branco reflectido pelos seus olhos. Vêem apenas o que enquadram em imagens; tristes olhos para quem a realidade é o que é, não o que poderá vir a ser ou o que nunca será. 

A vida é complexa, se não o fosse estes meus vagos pensamentos, esta crónica que passou a ser uma espécie de 'ficheiros secretos' do que julgo sermos, não duraria mais do que duas ou três semanas. Esgotar-se-iam os temas. Somos feitos de paradoxos, objectivos por cumprir, cortinas de fumo. Encontramos gente que não compreendemos. Uns pela sua inteligência luminosa, outros pelo negro que carregam, pavões, humildes e falsos humildes. Tão irritantes como os pavões, inchados de garbo e arrogância, são os que usam a humildade em excesso para trepar montanhas, paredes e pessoas. Conheço-os de um lado e do outro; espalha-brasas e delicodoces, narcisos e palhaços pobres, e sei o quanto, uns e outros, são ambiciosos e dependentes das vitórias e dos olhares dos outros. Soberba e excesso de humildade são irmãos quase siameses.

E não esqueçamos, a ignorância é uma faca de um par de gumes. Quando encontramos um ignorante sincero temos com ele a condescendência que merecem os ingénuos. Mas quando damos de frente com um ignorante sem a consciência que o é, pode tornar-se insuportável. No primeiro caso, no limite, questionamo-nos das nossas próprias certezas – se aquela pessoa é tão simples e parece estar tão bem com isso, porque insistimos nós em complicar a vida com equações de impossível resposta? No segundo, na mesma situação limite, temos vergonha e embaraço. Mas não podemos ter demasiada pena desse tipo de ignorantes, ao mínimo pretexto esmagam-nos sem sombra de hesitação. 

Muito cuidado, sempre muito cuidado. Nas amizades, nos conhecimentos, na vida profissional, em casa. Cuidado com as rotinas, não com as que nos tranquilizam e até equilibram, mas com as que nos moldam e nos tornam totalmente dependente dos hábitos, as que nos tornam iguais todos os dias. As que nos tornam um pouco caninos. 
É que a relação entre um cão e uma pessoa geralmente é para sempre. Não tem picos de ansiedade, crises existenciais ou falta de carinho – é um presente contínuo, uma rotina sem culpa, uma presença que, passado um tempo, já não é apenas a do cão mas a de nós naquilo que temos como certo e nos tranquiliza. Tentamos escapar à rotina na relação com a pessoa que dorme ao nosso lado, tentamos ir ao seu encontro no momento em que abrimos a porta de casa a um 'fiel' amigo. A força do hábito é uma das forças motrizes do que somos, dela precisamos embora nos repugne quando pensamos no que fizemos à nossa vida e concluímos que a pessoa que temos ao lado come, dorme e vai à rua sempre à mesma hora.
 
Falo muito das relações e nelas continuo a acreditar. Muito. Apesar de todos os revezes. É talvez, inconscientemente, uma forma de me colocar em alerta, de partilhar convosco, de contribuir para nos pensarmos. Os gritos nas relações nunca são motivados pela conclusão de que uma pessoa já pouco nos diz. As grandes discussões, com vidros partidos, ameaças e rancores, não acontecem pela constatação de que nos equivocámos em relação à presença, ao perfil, à inteligência ou a qualquer outra ideia geral. As paredes estalam com um acontecimento, um pretexto, uma traição, um equívoco. Um incêndio numa floresta ateia-se com uma ponta de cigarro ou um fósforo, o mesmo acontece numa relação. É uma pequena chispa que convoca a labareda, não o contrário. 

E não nos iludamos, o que torna o Mal diabólico é a convicção de que não é deste mundo – nada de mais questionável. Não percebemos como começa nem como as cartas se baralham, mas sabemos bem que tudo está pronto a detonar dentro de cada um de nós. O Bem e o Mal correm-nos nas veias, constroem condados e têm soldados especializados. Não transcendem a nossa vontade, estão apenas à nossa disposição. Somos nós que os alimentamos, somos nós que escolhemos a quem dar livre-trânsito. Nesses dois exércitos predominará sempre o que for por si alimentado, o Diabo nada tem que ver com isso.