A política dos casos

Além do hipermediático caso Sócrates, o folhetim de casos que se sucedem na vida pública portuguesa parece não ter fim: foram os vistos gold, as dívidas de Passos Coelho, agora é a lista VIP do fisco que acabou por provocar as demissões do director-geral e subdirector da Autoridade Tributária. E neste enredo importa recordar o…

Por muito que desagrade a António Costa a baixa política de 'casos' – levando-o a querer arrumar definitivamente, ou pelo menos até às eleições, os esquecimentos contributivos do primeiro-ministro -, a política no sentido mais nobre do termo, a política das ideias, das alternativas de governo e de soluções concretas para os problemas do país surge cada vez mais soterrada pela proliferação de episódios que ilustram a degenerescência dos costumes na actividade política e administrativa ou no funcionamento do Estado. 

Dito isto, convém não esquecer a vida económica e empresarial, porque a somar aos casos já referidos há ainda o mais tentacular de todos: o do BES, com aquilo que tem revelado sobre uma rede intrincada de interesses inconfessáveis, relações promíscuas, manobras ocultas e desesperadas ou fuga vergonhosa às responsabilidades, envolvendo um vasto leque de figuras cuja reputação se supunha inatacável. 

Às ruínas do mais mítico grupo familiar português outras ruínas se juntaram, como a da mais inovadora e promissora das empresas nascidas ainda no sector público, a Portugal Telecom. E para explicar como se chegou ao maior colapso banqueiro nacional – que, aliás, se seguiu a outros de contornos igualmente reveladores da vertigem financeira doméstica: o BPN, o BPP, o Banif ou o próprio BCP – seria necessário invocar o papel tíbio das entidades de supervisão, a começar pelo Banco de Portugal e culminando no apressado lavar de mãos dos responsáveis políticos.  

Há um efeito de contágio nesta conjugação de casos que nos fornece o retrato de um país de videirinhos, aproveitando as facilidades proporcionadas pelos bastidores do poder político e cujas origens remontam às benesses oferecidas pelo maná dos fundos europeus. 

O que deveria ter funcionado como alavanca para desbloquear e desenvolver um país marcado por uma estagnação e atraso históricos, acabou por ser capturado por interesses particulares típicos de um novo-riquismo predador. Foi assim que se sacrificaram a agricultura e as pescas – que, agora, o mesmo homem responsável pelo seu abandono, Cavaco Silva, apresenta como factores de um novo desígnio nacional. 

E, não por acaso, entre as últimas gerações da elite política, muitos foram aqueles que, nados e crescidos na escola das 'jotas' partidárias, fizeram a sua carreira 'empresarial' em organizações cujo segredo era captar as ajudas comunitárias para objectivos perdulários, fantasmagóricos ou, nalguns casos, prejudiciais ao ambiente, como se verificou com empresas no género da Fomentinvest ou Tecnoforma. 

Passos Coelho ou Miguel Relvas foram formatados por esse percurso, mas podemos encontrar situações paralelas em militantes de outros partidos, nomeadamente o PS, onde a trajectória de Sócrates – incluindo um currículo universitário idêntico ao de Relvas – apresenta sintomáticas conexões no relacionamento com o grupo Lena, por exemplo.

Por mais repugnância que nos inspire a chamada política de casos, é ela que tem vindo a marcar, infelizmente, a imagem mais visível da política portuguesa. O moralismo serôdio de lançar sobre os partidos da governação o labéu 'São todos podres e iguais uns aos outros' representa uma perigosa tentação populista e demagógica. Mas enquanto prevalecer a condescendência com o relativismo moral que sustenta todos esses casos, corremos o risco de pregar no deserto a favor de uma atitude crítica mais construtiva. 

O recente caso das 'distracções' contributivas de Passos Coelho acaba por ser inevitavelmente associado a casos como o da lista VIP, alimentando a suspeita de uma desigualdade imoral entre os contribuintes comuns e os outros – protegidos pelo seu estatuto e os seus privilégios.

Para nos libertarmos de uma política de casos, só há um caminho a percorrer: o de uma exigência política e moral que possa ser partilhada pela generalidade dos cidadãos. De nada servirá vociferarmos contra essa política de casos, enquanto ela continuar a poluir, até torná-la irrespirável, a atmosfera da vida pública portuguesa.

A política não é a moral, mas não haverá política sem casos enquanto a suspeita de imoralidade prevalecer.