Uma viagem endiabrada

Eu e dois amigos – o José Marquitos, administrador da Newshold, e o Luís Rosa, director do jornal i – combinámos uma viagem a Braga. A ideia era encontrarmo-nos lá com mais uns amigos à hora de almoço, para um encontro de trabalho à volta da mesa.

As primeiras dúvidas surgiram quanto ao meio de transporte a usar: carro ou comboio? Eu e o Rosa decidimos ir de comboio, o Marquitos foi de carro à boleia com outras pessoas que também participariam no almoço. Até aí, tudo bem. Já quanto à hora, a hesitação foi maior. A ideia era chegar por volta do meio-dia. Consultou-se o horário dos comboios e chegou-se à conclusão de que havia um Alfa pendular às 7h09, que chegava a Braga às 10h25, e um Intercidades às 9h39, que chegava às 13h25. O primeiro impulso apontou no sentido do das 7h, mas o Rosa e eu ainda tínhamos coisas a fazer de manhã, o que nos obrigaria a levantar às quatro e pouco. Uma violência. Optámos assim por ir no das 9h39, embora chegássemos já a meio do almoço, marcado para as 12h30.

Com receio do trânsito matinal, cheguei cedo à Gare do Oriente, por volta das 9h00, e como não conhecia a estação decide subir logo para o cais de embarque.

A estação é muito bonita. Da autoria do arquitecto valenciano Santiago Calatrava, parece inspirada nos insectos: tubos e filamentos de aço sustentam grandes superfícies de vidro, quais asas de mosca, numa profusão exuberante de formas em que predominam as curvas. O efeito visual é bonito, tudo é leve e transparente, mas não é nada cómodo.

O cais onde eu esperei durante largos minutos era varrido por uma aragem fria que àquela hora da manhã congelaria o homem mais quente. Apesar da minha formação de arquitecto, e de estar no meio de uma celebrada obra arquitectónica contemporânea, tive saudades da velhinha e feia Estação de Santa Apolónia, onde edifícios compridos abrigam o cais de embarque protegendo os passageiros e oferecendo-lhes a oportunidade de tomarem o pequeno-almoço ou uma sanduíche retemperadora enquanto esperam pelo seu comboio.

O cais da Gare do Oriente é um deserto. É um verdadeiro desastre do ponto de vista da comodidade. Para glorificar as formas, Calatrava desprezou os passageiros.

Quando ainda estava no cais recebi por telemóvel uma má notícia do Luís Rosa: “Esqueci-me de uma coisa indispensável, tive de voltar a casa, e como já não chegaria aí a tempo vou apanhar o comboio em Coimbra”.

O comboio entretanto lá chegou, entrei nele gelado e enfiei na primeira carruagem, pensando que seria a 1.ª classe. Azar o meu: não era. As carruagens de 1.ª classe eram as duas últimas, e o meu lugar era precisamente na última. Ora, atravessar um comboio de uma ponta a outra, com pessoas na coxia, bagagens mal arrumadas, senhoras com crianças ao colo, não é brincadeira nenhuma. Tive de pedir desculpa dezenas de vezes, pois era impossível evitar bater com a minha mala em algumas pessoas com quem me cruzava.

Finalmente, lá cheguei ao meu lugar. Preparei-me para descansar – e bem precisava. É que, para lá daquele início de manhã pouco promissor, não tinha conseguido dormir de noite praticamente nada: uma terrível espertina atacara-me impiedosamente (coisa raríssima), pelo que ao sentar-me experimentei um enorme alívio.

Mas descansar voltaria a ser difícil. O lugar que me calhou em sorte estava cercado por um grupo de homens que percebi serem da Refer, que falavam em voz alta de problemas laborais. Eram uns quatro ou cinco, fazendo uma razoável algazarra mesmo em cima de mim. Estiveram um bocado a debater acaloradamente os planos da empresa e o comportamento das chefias. Fechei os olhos, mas as palavras pareciam bater-me ainda mais forte nos ouvidos. Até que um deles disse: “As pessoas querem descansar e nós estamos para aqui a fazer barulho…”. E, dito isto, levantaram-se e saíram da carruagem. Adormeci instantaneamente.

Acordei com o telemóvel a tocar. Era o Luís Rosa a perguntar-me se aquele comboio que estava a entrar na gare em Coimbra era o meu. Respondi que sim, pouco depois ele entrou e daí até Braga a viagem foi calma, suavizada por conversas entrecortadas por telefonemas.

Finalmente chegámos. Como geralmente faço, levava uma gravata na mala para pôr antes me encontrar com as pessoas, evitando o incómodo de viajar desde Lisboa engravatado. Tirei a mala da bagageira, abri-a, saquei a gravata e comecei a fazer o nó. “Esteja à vontade que o comboio já não sai daqui. Pode fazer tudo nas calmas” – disse-me o Rosa com a melhor das intenções enquanto saía do comboio.

Quando, porém, eu acabava de compor a gravata, o comboio começou a andar para trás. Esperei que estancasse a qualquer momento, poderia estar a descair, mas qual quê! Continuava implacavelmente a sua marcha-atrás. Corri para a porta, com a gabardina e o casaco numa mão, e a mala na outra, desci para o degrau inferior, hesitei, vi o Rosa a correr pela plataforma fazendo sinais desesperados ao maquinista para parar – mas o comboio não parava. Não tinha alternativa: medi o risco, dei o impulso – e saltei. Não foi um grande salto, mas com as duas mãos ocupadas e não estando fisicamente nos meus melhores dias foi uma temeridade.

A chegada ao local de encontro – o Restaurante Arcoense, classificado com 4,5 estrelas no Tripadvisor – não teve história. Os outros convivas já estavam sentados à mesa, levantaram-se quando chegámos, cumprimentámo-nos todos, sobre a toalha viam-se algumas entradas que prometiam – e nesse preciso instante uma indisposição súbita tomou traiçoeiramente conta de mim. Fiquei a tremer, como se tiritasse de frio, e o simples facto de olhar para a comida passou a causar-me repulsa.

O empregado veio simpaticamente registar os pedidos, todos preferiram os pratos regionais – o rabo de boi, as mãozinhas de vaca com grão, os rojões à minhota, o cabritinho pingado – e eu pedi um simples bacalhau à brás. Mas, quando a travessa do bacalhau chegou, só consegui tirar para o meu prato umas míseras duas colheres mal cheias. Que mesmo assim engoli com esforço. A única coisa que me soube bem foi a água – sendo certo que todos os meus companheiros de refeição beberam vinho, que recolheu fartos elogios.

Eu ia vendo passar as travessas que aos outros faziam certamente crescer água na boca – agora o rabo de boi, num tacho fundo, depois os rojões, escuros como breu, a seguir as mãozinhas -, mas tudo aquilo só contribuía desgraçadamente para aumentar a minha indisposição. E no fim, quando vieram as sobremesas – que se compunham de um prato com doces sortidos para cada comensal – não consegui sequer provar nem uma especialidade, indo o prato intacto para dentro.

O repasto lá acabou, para meu alívio. E na viagem de regresso a Lisboa dormi todo o tempo. O mesmo acontecendo depois de chegar a casa – primeiro no sofá e a seguir na cama. Ao todo, foram quase 18 horas seguidas.

Resta-me pedir desculpa a todos naquela mesa pela péssima companhia que naquele dia lhes fiz. E já agora adianto o nome dos restantes amigos, para lá do José Marquitos e do Luís Rosa: António Cunha, reitor da Universidade do Minho,  Mário Ramires, CEO da Newshold, Paulo Viana e Telmo Magalhães, advogados de Braga, Fátima Esteves, advogada de Lisboa, e Gonçalo Guérin, director jurídico da Newshold.

P.S. – Publiquei neste espaço uma crónica relatando um acidente de que fui vítima e que a companhia de seguros do causador do sinistro se recusava a assumir. Pois bem: esta semana, um responsável da mesma companhia (a Zurich) procurou-me, admitiu a responsabilidade do seu cliente, confirmou a minha versão e pediu-me desculpa pelo sucedido. Reconhecer o erro é um acto que só honra quem o pratica.

jas@sol.pt