Alice Rohrwacher: ‘Descobri a luz em Lisboa’

A realizadora e argumentista italiana fez escola de cinema em Portugal. Aos 33 anos foi premiada pelo júri em Cannes com a segunda longa-metragem, O País das Maravilhas, no qual uma família de apicultores vive à margem do presente como da lei.

Que relevância teve entrar para o cinema através da porta documental?

Estava a fazer Erasmus em Grego Clássico e Filosofia na Faculdade de Letras entre 2004, 2005, quando descobri que havia um curso de poucos meses de cinema documental na Videoteca Municipal de Lisboa, leccionado pela (realizadora) Margarida Cardoso. O documentário é do mais artificial que existe. Dele vem a pergunta que aplico à ficção: 'Qual é a minha posição em frente a esta realidade que acontece?' Não ambiciono ser realista mas sim ter um olhar vivo. Às vezes a câmara vai num sentido oposto ao das personagens porque quero olhar para outra coisa.

Se é verdade que tudo é uma opção, também se mostra aberta ao impreciso, da câmara trémula à película de 16 mm.

Escolhemos 16 mm não só pela materialidade, mas precisamente para não termos o controlo de tudo. Queríamos uma imagem orgânica. Nunca fizemos planos de pormenor.

Vejo o filme como um tratado sobre a luz.

Lisboa é uma cidade que a cada dia conta uma história da luz. A morte, a sombra e a luz são os amores primogénitos do cinema se pensarmos nele como um feixe de luz que entra num buraco onde há movimento. Esse mecanismo descobri-o em Lisboa. Essa dança é mais importante que a narrativa. Eu e a Helène Louvart (directora de fotografia) tentámos que uma história de sombra e luz, que é a do cinema, atravessasse o filme. Primeiro o escuro, a luz que vai entrando na casa, os fantasmas, depois uma tentativa de criar uma materialidade – pode-se beber a luz, tocá-la com o pé… Há uma cena em que a Gelsomina (a protagonista adolescente) entra na caverna, as sombras dançam, ela toca nelas. Este amor pelo cinema é contrário ao digital e mostramo-lo sem grande cinefilia.

O fantasma é sobretudo o de um modo de viver comunitário, rural, nómada, negligente perante qualquer autoridade. No filme vemos a mão da globalização a tocá-lo, a servir-se do tradicional para chamar turistas…

Para Gelsomina esse segundo mundo é misterioso, nele pode esquecer os seus problemas, mas afinal é um mundo sem mundo, nada tem de verdadeiro. O que a jovem apicultora tem de compreender é que estamos todos no mesmo barco, a lei não existe, é uma qualidade, não é um lugar.

É verdade que para filmar crianças e abelhas também teve de contornar a lei?

Como não existe um seguro para isso na categoria de cinema de ficção em Itália, filmámos todas as cenas com as abelhas num só dia e com uma equipa de documentário. No feriado de 15 de Agosto, assim todos estariam de férias (risos)…

Como dirigiu actores, crianças, não actores e animais?

Gosto de misturá-los como se também eles fossem uma comunidade errante onde ninguém tem os seus caprichos. Assim ficamos próximos do circo da representação. Ensaiámos muito para que as coisas escritas acontecessem como alquimia. Três semanas antes das rodagens, o pai e as crianças foram morar para a minha casa. Era importante que aprendessem a estar com as abelhas e que estabelecessem relações familiares.

Assina o argumento e a realização. Não sentiu a tentação de pegar na câmara?

Quando fiz documentários fazia tudo, mas a câmara parecia-me uma pistola apontada – pum, pum! Não filmando, sinto-me mais livre e dou mais liberdade à equipa. O resultado vem como um milagre.