Irresponsável e inverosímil

Quem tiver seguido, na semana passada, as audições parlamentares de Ricardo Salgado e Paulo Núncio, ainda secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no momento em que escrevo, desfrutou de uma edificante sequência onde, apesar da diversidade dos temas e protagonistas, sobressaiu, co- mo traço comum, uma fuga escandalosa às responsabilidades.   

Uma vez mais, Salgado recusou assumir as suas responsabilidades pessoais no longo processo que conduziu ao colapso do BES, remetendo as culpas principais para o Banco de Portugal (BdP). Quanto a Núncio, escudou-se nos depoimentos dos seus subordinados demissionários da Autoridade Tributária (AT) – ouvidos entretanto na mesma comissão de inquérito – para invocar o desconhecimento de uma lista VIP de contribuintes que teria sido ensaiada nos últimos meses a partir de uma iniciativa do subdirector-geral, José Maria Pires, com a cobertura do director-geral, Brigas Afonso. 

Note-se que o secretário de Estado foi peremptório na condenação da iniciativa. Além disso, declarou-se «visceralmente» contra qualquer lista de diferenciação de contribuintes que, de resto, considerou claramente «inconstitucional». 
 
A fuga às responsabilidades (pessoais, empresariais ou políticas) não é propriamente uma novidade na nossa vida pública. Mas o que começa também a banalizar-se é essa desresponsabilização se basear em explicações que desafiam a verosimilhança mais elementar.

Vimos recentes exemplos disso, aliás, nas caóticas aberturas dos novos anos judicial e escolar, em que os incidentes técnicos ou as culpas dos funcionários serviram para justificar o improviso e amadorismo político dos ministros respectivos. 

Por mais sincero que Ricardo Salgado pretendesse ser na defesa da sua honra e da sua autoridade como líder do BES, tudo o que dele ouvimos revelou-se pateticamente inverosímil. Ninguém pode acreditar que «o melhor banqueiro português», como lhe chamou Miguel Sousa Tavares, se tenha perdido num labirinto arquitectado por ele próprio, caindo em sucessivos alçapões, falhas de memória ou outras derivas mentais, para finalmente atribuir a responsabilidade pelas desgraças acontecidas à maldade e incompetência de terceiros ou a golpes trágicos do destino.

Evidentemente, é sempre possível invocar os álibis da fantasia literária para enquadrar as incríveis peripécias da catástrofe do BES. A substância romanesca do caso é, de facto, extremamente sugestiva, pelas lições que permite extrair sobre a queda de um império familiar mergulhado na vertigem do dinheiro e do poder, na sequência do crash financeiro de 2008 nos Estados Unidos e na Europa.  

Mas a história e a literatura não diluem as responsabilidades pessoais de quem, como Ricardo Salgado, esteve no comando de uma instituição que, em grande parte por culpa sua, desabou como um castelo de cartas. 

De resto, a leitura das culpas atribuídas por Salgado ao Banco de Portugal pode ser virada do avesso. O atraso na actuação do BdP e o tempo que – em parte por temor reverencial face ao 'dono disto tudo' – concedeu à liderança de Ricardo Salgado para salvar os móveis familiares do naufrágio iminente acabaram por precipitar o derradeiro acto da tragédia. 

Foi isso que tornou os efeitos da catástrofe tão devastadores, incluindo para os depositantes do Banco enganados e desprotegidos perante as últimas manobras desesperadas de Salgado para salvaguardar o património pessoal e familiar. 

Noutro contexto, o que torna inverosímil a irresponsabilidade política de Paulo Núncio no caso da lista VIP é ter descurado o escrutínio da actuação dos directores da Autoridade Tributária quando já havia indícios públicos e ruidosos sobre o famoso pacote dos «contribuintes específicos», incluindo processos disciplinares a funcionários do fisco.

Se Núncio ignorava a iniciativa dos seus subordinados da AT e dela só tomou oficialmente conhecimento quando já toda a gente estava a par do assunto, isso testemunha um insustentável autismo e irrelevância política no exercício do seu cargo – e num caso que ele próprio reconhece como sendo de extrema gravidade. 

Pior do que isso: o secretário de Estado negou persistentemente a veracidade dos factos, recusando até a abertura de um inquérito – que apenas se concretizou depois de uma decisão da ministra das Finanças. 

De qualquer modo, o padrão de comportamento da actual maioria PSD/CDS tem consagrado a absolvição da irresponsabilidade política, mesmo quando  esta  se  revela  manifestamente inverosímil e ameaça gravemente a credibilidade do Governo.