Falsas queixas para conseguir ficar com filhos

Há cada vez mais casos de pais que apresentam queixas de violência doméstica contra o outro progenitor só para ganharem vantagem no processo de regulação das responsabilidades parentais. A denúncia é do juiz Joaquim Silva, do Tribunal de Sintra, que alerta para o impacto das falsas acusações na vida das crianças que ficam injustificadamente privadas…

“São casos em que o conflito parental é grave. As acusações surgem já depois de estarem a correr os processos de regulação das responsabilidades parentais e reportam-se a situações que aconteceram há muito tempo”, afirmou ao SOL o juiz de Família. Aqui há a “intenção de lançar a suspeita sobre o outro progenitor”, acrescenta, para que este fique impedido de contactar com o filho. Joaquim Silva diz ainda que nos conflitos parentais graves há pais que chegam a indiciar o outro de abuso sexual. “O efeito do conflito parental sobre as crianças é arrasador. Mas estas têm direito a ter pai e mãe. Cabe ao tribunal condenar os agressores, mas também ajudar os pais a superarem a relação conflituosa”.

Rute Agulhas, psicóloga forense que avalia vítimas e agressores, diz que estes casos são frequentes. “Os pais empolam a situação e quando falamos com a criança percebemos que não é bem assim ou que a violência é mútua”, revela ao SOL, sublinhando a percentagem de queixas de violência doméstica arquivadas por falta de fundamento. A técnica forense diz que estas situações conduzem a um afastamento entre pais e filhos, por vezes de anos, que é muito difícil de recuperar.

Falsas queixas vão subir se pais forem afastados pela lei

À Associação para a Igualdade Parental já chegaram casos de pais afastados dos filhos com base em suspeitas infundadas. Ricardo Simões, presidente da associação, teme que isto venha a agravar-se com a aplicação da Convenção de Istambul, que prevê o afastamento dos suspeitos de violência doméstica dos seus filhos.

Esta convenção internacional destina-se a combater a violência contra as mulheres e já foi ratificada por Portugal. Neste momento, há várias propostas em debate no Parlamento para incorporar aqueles princípios na lei nacional. Um deles é do BE e prevê a “suspensão ou restrição do regime das visitas do agressor quando existam indícios de violência doméstica” – uma proposta que já suscitou reservas nos pareceres dados por juízes, advogados e procuradores.

O juiz Joaquim Silva alerta: “Ao afastar estes pais dos filhos podemos estar a criar um problema enorme às crianças. E até aos adultos que podem ficar mais desequilibrados”. Se não houver risco para o menor, este pode continuar a conviver com o agressor, num ambiente de segurança (por exemplo, na presença de técnicos especializados, sugere). Eurídice Gomes, procuradora da República no Tribunal de Família e Menores de Braga, também alerta para o risco desta medida automática e defende, em alternativa, uma avaliação caso a caso. “Não é necessariamente verdade que o agressor seja um mau pai”.

A psicóloga Rute Agulhas sublinha que o que acontece entre os pais tem um enorme impacto nos filhos. Mas ressalva que não se podem colocar “todas as situações no mesmo saco, porque os graus de violência são diferentes e a forma como as crianças a processam também”. E lança outra questão: “E quando a violência é bidireccional? A criança deve ser afastada de ambos os pais?”. Na regulação parental, defende, “temos de nos centrar no que é melhor para a criança e para isso é preciso avaliar se a cessação do contacto não pode vir a ser mais doloroso”.

Violência afecta capacidade para educar e cuidar

A psicóloga forense refere ainda um estudo feito com crianças que vivem em casas-abrigo com as mães. “Grande parte percepciona a mãe (vítima) como distante e pouco disponível emocionalmente. Devido às suas vivências e depressão, as mães podem não ser protectoras. E isto devia fazer-nos pensar”.

Telma Almeida, docente do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, diz que os estudos mostram que “perante o processo de vitimação surge uma série de constrangimentos no exercício da parentalidade”. Por exemplo: “as mães vítimas tendem a utilizar mais frequentemente práticas educativas desadequadas, como a punição física”. Do lado do agressor, a investigação mostra também que a “qualidade da relação com a criança se encontra diminuída”.

 Eurídice Gomes não descura os efeitos graves da exposição das crianças às agressões dos pais – o que acorreu em 39% dos casos de violência doméstica detectados em 2013, segundo o Relatório de Segurança Interna desse ano. Mas diz que, por vezes, quando cessa a relação conjugal, é possível manter um convívio normal com os filhos. A procuradora diz que para proteger as vítimas de violência doméstica “não são necessárias mais leis mas melhores práticas, como o contacto permanente entre quem trabalha na família e no crime”.

Só a troca constante de informação entre os magistrados pode evitar que sejam aplicadas medidas contrárias à mesma família, colocando em risco a sua segurança. Por exemplo: o tribunal penal decretar o afastamento do agressor da vítima e o de família decidir que o pai vai buscar o filho a casa da mãe ao fim-de-semana. “Às vezes, as pessoas nem nos dizem que há um processo de violência doméstica porque têm medo. E isso é essencial”.

Fátima Duarte, da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens, afirma que os casos de violência doméstica são hoje mais complexos e chegam à Polícia “já no limite”. Aí, se ditar o afastamento do agressor não for suficiente para garantir a segurança, “a criança e a mãe têm de sair de casa”. Sobre os pais que são agressores reiterados, a jurista não tem dúvidas: “Devem ser inibidos das responsabilidades parentais”.