Estava em Havana quando soube da morte de Herberto Helder e foi também aí que recebi as primeiras informações sobre os resultados das eleições regionais na Madeira. Confesso desde já uma dupla estranheza e um duplo desconforto por ter sido surpreendido a uma tão grande distância por notícias que me remetem para as minhas origens insulares.

Helder não foi apenas o maior escritor nascido na Madeira e o poeta mais marcante da literatura portuguesa depois de Pessoa. Ele foi, para mim e a minha geração de madeirenses, quem mais fortemente desvendou as raízes do nosso imaginário, aquele cujas palavras mágicas transportámos no coração desde esse livro absolutamente genial chamado ‘A Colher na Boca’.

Por acasos do destino, nunca nos conhecemos pessoalmente, mas não creio que isso tenha afectado a intimidade intensa, visceral, que eu e tantos amigos madeirenses da minha adolescência partilhámos com ele. Porque foi Helder quem nos revelou o lado mais secreto e profundo de uma vivência insular que ultrapassava as circunstâncias históricas da Madeira. Uma Madeira nem velha nem nova mas fora do tempo.

Há muito que Helder vivia afastado da sua ilha natal e é conhecida uma sua tentativa fugaz e frustrada de regresso às origens. De facto, nada é mais difícil e dramático do que enfrentar esse regresso, a teia espessa de relações que tecemos com o mistério mais fundo das nossas vidas e que, suspeito, terá representado para ele uma viagem impossível e insuportavelmente dolorosa.

Quando desaparece uma figura como Herberto Helder, é inevitável experimentarmos uma sensação de pequenez e vazio, confrontados com a força telúrica de uma obra que nos revela na nossa nudez essencial face a uma ilha perdida no meio do mar. E não conheço fragmento poético mais sublime sobre a morte da mãe de um poeta como este que sempre guardei e recitei de cor: “Não há guindaste que te levante do coração das águas, onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível…”

Depois da morte de Helder, as peripécias eleitorais na Madeira – onde não voto desde que me recenseei em Lisboa há mais de quarenta anos – confundem-se ainda mais, para mim, nessa sensação de pequenez. E, no entanto, é impossível  menosprezar  o  significado político  das  últimas  eleições  regionais.

Chegou a antever-se o fim simbólico do absolutismo jardinista (e, já agora, pós-jardinista) que poderia eventualmente obrigar o PSD de Miguel Albuquerque a uma coligação com o CDS, segundo partido mais votado. No entanto, o que terá sido mais inesperado e relevante não foi propriamente o novo e patético fiasco do PS – e a sua aliança sem qualquer consistência política com um grupo de aventureiros deslumbrados pelo poder – mas o aparecimento de uma força oriunda da actividade autárquica, o Juntos Pelo Povo (JPP), que nasceu na freguesia de Gaula e conquistou recentemente a Câmara de Santa Cruz, uma das zonas mais populosas da Madeira.

Sendo embora um movimento sem reconhecido substrato ideológico, o JPP soube vencer a já esgotada tentação folclórica de parodiar o jardinismo, como fora o caso do PND ou do PTP de José Manuel Coelho – embarcado e punido na grotesca coligação com o PS -, ao mesmo tempo que ultrapassava as velhas receitas dos partidos de protesto como o PCP e o Bloco de Esquerda, tornando-se o quarto partido regional.

Os comunistas chegaram a vangloriar-se de ter arrancado a maioria absoluta ao PSD na recontagem dos votos – aparentemente prejudicada por um erro técnico que ignorou o Porto Santo… -, enquanto o Bloco, ausente da anterior Assembleia, conseguiu regressar ao palco parlamentar. A estimulante novidade na vida política regional traduziu-se, porém, no fenómeno JPP: através do trabalho no terreno junto das populações, conseguiu conquistar um capital de confiança quase sem precedentes na Madeira.

Evidentemente, é cedo demais para avaliar a evolução política do JPP com a mudança de escala da intervenção autárquica para um programa mais abrangente a nível regional. Não por acaso, Miguel Albuquerque, naturalmente interessado em demarcar-se da herança jardinista e temendo ficar refém de uma aliança tortuosa com o CDS, teria preferido uma aproximação ao JPP.

Segundo as primeiras declarações dos dirigentes do novo partido, estes estariam conscientes dos riscos da tentação do poder, comprometendo a sua independência e credibilidade. Só que na Madeira, depois do que aconteceu nos últimos quarenta anos, é mesmo preciso ver para crer. E uma Madeira efectivamente nova – depois da velhíssima 'Madeira nova' de Jardim – terá sempre um parto muito difícil. Resta ao JPP não trair a centelha de esperança que despertou no desencantado e abstencionista eleitorado madeirense.