Há famílias felizes? Mesmo?

Quando calha a ter férias nem sei muito bem o que fazer com elas. Fico atarantado, precisava do dobro do tempo para as saber reconhecer e conseguir descansar. Não sei se tem a ver com a obsessão pelo trabalho ou com a quebra das rotinas de solidão, é provável que seja a soma das duas…

Realmente, não há uma ligação directa entre a solidão e o viver sozinho. É um equívoco frequente, uma pressa em quem cataloga, talvez um medo implícito – há solitários que existem entre multidões e o contrário também é comum. Entre os que adormecem desacompanhados há um perigo maior do que a solidão: o de, às tantas, os seus fantasmas, bons e maus, passarem a estar presentes como se fossem vivos. Ocupam espaço e matam-nos antes de tempo. Cá para nós é bem pior do que a solidão porque nos habituamos à presença de quem nunca mais estará presente.

Aproveitei as férias, confesso, para limpar a casa de uma parte do que não precisava. Revi papéis, redacções de liceu, textos em que atropelava ideias com outras que ficavam a meio. Quanta pressa de viver, quanta vontade de me dar ao mundo e de o poder mudar, quantos pontos de exclamação – podemos medir o crescimento pela quantidade de exclamações que usamos. Começamos por usá-lo sem freios ou reticências, acabamos por deixá-lo e dele passamos a ter distante memória. Um ponto de exclamação é um aliado de juventude, uma gargalhada que se prolonga no que se escreve, uma indignação partilhada sem receio que mal pareça. A mesma pontuação agora, se a usasse, seria apenas de uma ridícula falta de gosto. Nunca a uso, mas nos cadernos dos filhos procuro-a. E quando os vejo, desenhados no final das frases, sorrio tranquilo.

A cozinha foi o lugar na casa em que deitei menos coisas fora. Ao procurar nas gavetas dei pela falta dos guardanapos de pano. Os rituais das famílias alteraram-se. Deixámos de receber visitas, os guardanapos são hoje de papel e passámos a comer em tabuleiros ou à porta do frigorífico. As casas têm menos mesas de jantar e mais de cozinha, os sofás têm menos livros à frente e mais televisões, há menos crianças e menos conversas, talvez haja mais entretenimento – não é mau andarmos entretidos na vida, mas seria melhor se vivêssemos comprometidos com ela.

Porém, somos o país em que o 'mas' tem um verdadeiro poder. Quando se nos depara uma pessoa, uma ideia, um acontecimento que aspire à utópica perfeição logo escrevemos um decreto: é muito bom, 'mas' se fosse de outra maneira seria bastante melhor. Fazemo-lo para proteger as nossas imperfeições. Porque os defeitos da 'perfeição' são sempre bem piores – a falha de quem se espera a ausência de falha não se desculpa tanto como a imperfeição dos imperfeitos, pois não?

Não fujo à regra, atenção. Desconfio metodicamente, sou avesso a cantigas de embalar. Quando me falam de famílias felizes, por exemplo. Quando me juram que na outra ponta da cidade existe um casal que vive paredes-meias com a felicidade, tomo a dica como uma ficção ou então é trabalho para espiões que nessa família se possam infiltrar – missão arriscada, mas talvez a única hipótese de compreendermos onde começámos a falhar. Há mesmo pessoas assim? Felizes? O que fazem? Como são? Onde guardam as angústias e o que fazem às dúvidas? Espero notícias. Conto-lhe logo que as saiba.

Depois, outra coisa chata, desconfio da sorte. Porque há uma coisa que sabemos muito bem: não dura para sempre. Mesmo os bafejados por pozinhos de fortuna podem contar com isso, nascerá o dia em que, sabe-se lá como e porquê, o vento soprará numa direcção dolorosa. Por isso, os que cantam de galo com bênçãos de fortuna, não podem ser levados a sério – porque tendo apenas sorte o que lhes restará quando ela mudar?

E, terceiro eixo do meu triângulo das bermudas, desconfio das proclamações de génios e afins. Muitos parecem sê-lo quando são apenas extravagantes. Outros desejam e convencem-se de que são livres, mas não passam de tolos ou idiotas. Entre estes, os que dizem, em entrevistas ou outras aparições, que não estão preocupados com o julgamento dos outros, que tanto se lhes dá se as pessoas o julgam simpático ou um intratável animal. Se vivemos uns com os outros ao menos que sejamos uns para os outros. Disto estou profundamente convencido.

Acredito na rara genialidade e ainda mais nos sonhos. Quem na juventude não tem os seus próprios sonhos, jamais deixará de depender dos sonhos dos outros. Com isto não defendo um caminho e condeno o outro; se todos o tivéssemos acabaríamos ainda mais azedos de tanta luta. Conheço gente grávida de ideias e originalidade, mas tola no que pensa. E outros que, não tendo ideias próprias, são generosos e artífices de um mundo melhor. Se me dessem a escolher preferiria que, das árvores que rego, nascessem ideias e sonhos. Mas não me importaria de abdicar dos meus para seguir os seus – se me fizesse acreditar que no futuro, com as suas ideias, seremos um país com árvores de fruto.