Artur Agostinho ao SOL: ‘Fui sempre um adepto um pouco frio’

Entrevista dada ao SOL em Novembro de 2010, perto de completar 90 anos.

Consegue dizer qual foi o golo mais emotivo que relatou?

Tive vários golos emotivos. Embora seja assumidamente sportinguista, grande parte da minha carreira como relator desportivo foi feita a acompanhar o Benfica na sua saga europeia, que foi das coisas mais notáveis dos anos 60. Tenho uma grata recordação dos anos 60, que considero os anos de ouro do futebol português. Foi o Benfica que emergiu da vulgaridade portuguesa, o Sporting na Taça das Taças e, em 1966, o Campeonato do Mundo em Inglaterra. Mas, para responder à sua pergunta, tive de facto golos que me deram muito prazer relatar, nomeadamente nos jogos do Benfica na Taça dos Campeões Europeus. O Eusébio, o Zé Augusto, o Coluna, o Torres e o Simões proporcionaram-me momentos de grande euforia como relator.

Não há um golo que recorde de forma mais especial?

Talvez os golos do Eusébio com a Coreia do Norte, no Mundial de 1966. Qualquer um deles. E há outro golo do qual me recordo muito bem. Curiosamente um golo marcado pelo Benfica ao Sporting, numa final da Taça de Portugal. O Rogério Pipi, depois de ser perseguido durante uns 30 metros pelo Passos, defesa-central do Sporting, marcou o golo que deu ao Benfica uma vitória por 5-4. Esse golo e esse jogo foram dos mais emotivos que relatei.

Mas esse golo foi mais azia do que alegria…

Sim, mas, integrado no jogo, eu funcionava pouco como adepto e mais como jornalista. Esse golo do Rogério, embora me tivesse revoltado o Passos não ter feito uma falta cirúrgica para travar a jogada, foi um grande golo.

E há o golo do Morais que deu a vitória ao Sporting na Taça das Taças, em 1964…

Sim, mas foi um golo que quase não se deu por ele. Houve aquele canto, a bola foi direita à baliza, o guarda-redes fez-se ao lance e a bola entrou directamente… Foi um golo mais frio, sem aquele crescendo natural do relato, mas um golo muito importante.

Chorou muitas vezes, de alegria ou de tristeza, com o futebol?

Chorar? Não, nunca chorei.

Nunca?

Nunca. Senti por vezes a azia da derrota da minha equipa, mas sempre pendurei o emblema à entrada da cabine de reportagem ou junto à linha lateral. Só regressava às minhas raízes clubísticas depois de o jogo acabar. Mas fui sempre um adepto um pouco frio. Era capaz de aplaudir um golo bonito de um adversário e não aplaudir um golo decisivo da minha equipa. Creio que atingi essa frieza pela necessidade profissional de relatar com isenção.

Como começou a ver futebol?

Apesar de ser sportinguista, comecei por ir ver o Benfica, ainda no campo das Amoreiras. Ia com o meu irmão. Ir ao Sporting era difícil porque o meu pai não me deixava ir sozinho para o Lumiar.

Por que se tornou sportinguista?

Não sei, não sou capaz de explicar. Talvez seja uma coisa genética, reforçada pelo espírito de contradição em relação ao meu irmão, que era benfiquista.

O seu primeiro relato foi no final da década de 40…

Sim, num Benfica-Porto, no Campo Grande, na velha estância de madeiras. Aconteceu por acaso. O Alfredo Quadro Raposo, que era o locutor desportivo da Emissora Nacional, foi fazer o torneio de Montreux em hóquei em patins e não conseguiu apanhar o avião de volta. Então o Adolfo Simões Müller, que era nessa altura assistente literário da Emissora, lembrou-se que eu poderia fazer o relato. Resisti heroicamente a esse desafio, mas acabei por ceder e gostei. Conhecia bem os jogadores, acompanhava o futebol todas as semanas e, por isso, não tive dificuldade.

Lembra-se do resultado?

Sei que ganhou o Benfica, mas não me lembro do resultado nem do ano exacto.

Claro que há gigantescas diferenças entre o futebol desse tempo e o de hoje…

Sim. Embora haja muita gente que defenda que não, que o futebol é igual, imutável e que as regras são as mesmas, é mentira. As regras foram mudando e as condições dos jogadores também. É por isso que me recuso sempre a fazer comparações entre essa época e os nossos dias. Mudou muita coisa. Os equipamentos mudaram, o peso das botas mudou, os terrenos passaram de pelados a relvados, a preparação física passou a ser mais cuidada, a alimentação…

E a beleza do jogo? Mudou?

Cada jogo tem a sua beleza. Depende da forma como os jogadores e os treinadores encaram os jogos. O espectáculo depende muito das estratégias adoptadas.

Muitas vezes também se fala das diferenças ao nível do fair play…

Havia jogos com fair play, mas sempre foi uma coisa muito condicionada pelas circunstâncias e pela importância do resultado… Diria que talvez houvesse mais pureza, uma pureza às vezes inconsciente. E havia, sobretudo, um sentimento de cumplicidade profissional entre os jogadores. Perdiam, mas no fim dos jogos iam para o Parque Mayer celebrar numa grande ceia com as coristas do Maria Vitória ou do Maria Matos.

Nessa época, final da década de 40 e início da década de 50, como era o seu dia-a-dia?

Muito preenchido. A rádio lançou-me para outras actividades. Comecei a ser solicitado para a imprensa desportiva, para a publicidade, entrei no cinema, surgiu a televisão… Tinha uma actividade muito dispersa e o tempo muito preenchido, mas sempre tive a felicidade de trabalhar no que gostava. Sentia-me feliz. Talvez tenha vivido pouco aqueles prazeres absolutos, mas, para mim, o grande prazer era trabalhar.

Coisa que continua a fazer…

Sim. O trabalho é a grande ajuda para a manutenção da minha forma. Hoje entrego-me à escrita, que é uma coisa que posso fazer mais tranquilamente. Felizmente a memória não me tem faltado. No dia em que não tiver memória a coisa começará a dar para o torto. A idade não importa desde que se tenha memória.

jose.fialho@sol.pt