Major Sem Medo

A história do assalto ao quartel de Beja em 1962 foi sempre contada pelos autores da intentona. Porque quem, sozinho, frustrou o plano de Humberto Delgado sempre se reservou a um público e honroso silêncio.

quando lhe bateram à porta do quarto no posto de comando do quartel de beja, às 2h15 da madrugada do primeiro dia do ano de 1962, o major calapez vestiu o capote e empunhou a sua pistola ‘savage’ pronta a disparar. nas vésperas, o coronel stadlin baptista, 1.º comandante do regimento de infantaria 3 na capital do baixo alentejo, passara-lhe o comando da unidade (para gozar licença) e tinha recebido informação, via telefone, do ministro do exército, de que estaria a ser preparado um assalto ao quartel.

alerta até de madrugada da noite da passagem do ano, na ausência de movimentações, o 2.º comandante do regimento recolheu ao quarto no primeiro andar do quartel, mas não sem antes dar instruções precisas: passe-se o que se passar, comuniquem por telefone e em caso algum venham ao meu quarto sem prévia autorização ou ordem expressa.

por isso, quando ouviu aquelas três pancadas na porta do quarto e as movimentações do lado de fora, o major calapez pôs-se em guarda: estava em marcha o assalto ao quartel de beja.

a intentona foi planeada por humberto delgado, que entrou clandestinamente em portugal no dia 30 de dezembro de 1961, dormiu na pensão s. jorge, em lisboa, e viajou no dia seguinte para beja, na companhia de adolfo ayala.

o general sem medo ficou sempre na retaguarda das operações, nunca chegou a ir sequer perto do quartel – decidiu que só o faria depois de assegurado o sucesso do golpe com que pretendia iniciar o derrube do regime (a operação designava-se ‘caixa de fósforos’ e consistia em tomar o quartel e, com suas viaturas e material de guerra, fazer sair três colunas para proceder à sublevação das populações de beja, évora e algarve, montando um governo revolucionário nas serras do algarve sob a presidência de humberto delgado).

o golpe juntava uma brigada mista de militares (incluindo oficiais das forças armadas, entre os quais jaime carvalho da silva, pedroso marques, francisco pestana, brissos de carvalho, hipólito dos santos e filipe oliveira), comandados pelo capitão varela gomes, e civis (cerca de oitenta, entre os quais edmundo pedro, urbano tavares rodrigues, fernando piteira santos ou joaquim barradas de carvalho), sob a liderança de manuel serra – tendo estes vestido uniformes militares (edmundo pedro conta que foi a única vez que envergou farda, com divisas de capitão).

mal entreabriu a porta do quarto, mesmo já de sobreaviso (confirmara as suspeitas quando do exterior lhe responderam que era «o sargento da guarda» – que nunca abandona o posto), calapez foi ferido no tórax por um tiro disparado do exterior pelo grupo liderado por varela gomes que tinha a missão de prender o comandante do quartel: um ‘disparo acidental’, na versão dos revoltosos.

calapez ripostou quase em simultâneo. varela gomes ficou gravemente ferido no basso. a troca de tiros entre o major no interior do quarto e o grupo que o pretendia prender (entre os quais os tenentes filipe oliveira e hipólito dos santos) no exterior acabou com estes a baterem em retirada, carregando o capitão ferido (ainda com um segundo tiro) para o carro que o conduziria de imediato ao hospital da cidade.

calapez, já quase sem munições, aproveitou a oportunidade para comunicar por telefone (do quarto) para o exterior, pedindo o auxílio da gnr e da psp. e, após alguns encontros imediatos com assaltantes (que conta com pormenor ao longo de um manuscrito de 26 páginas em que descreve todos os acontecimentos), conseguiu chegar a uma arrecadação onde sabia estarem guardadas as pistolas-metralhadoras ‘vigneron’ chegadas há dias.

às escuras, para não ser descoberto pelos revoltosos que ouvia percorrerem os corredores à sua caça, armou e carregou uma metralhadora e saiu com quatro carregadores.

acabou por alcançar um átrio lateral do quartel, elevado, junto à capela, de onde controlava a porta de armas e avistava o acesso à cidade.

conquistou posição e confirmou o que já suspeitava: que os seus homens aquartelados tinham ficado presos nas casernas e o quartel estava tomado pelo grupo de assaltantes, militares e civis com uniformes do exército, mas vários com sapatilhas. o grupo contara com a conivência de três oficiais no interior do quartel, que abriram as portas, anularam os sentinelas e trancaram as casernas.

calapez foi eliminando vários revoltosos enquanto esperava pela chegada de reforços. que tardavam. tanto que o major, temendo ficar a descoberto com o nascer do dia, foi buscá-los a beja, já com o capitão camilo delgado. e ele próprio organizou o cerco ao quartel e o ataque final.

o balanço das vítimas mortais do assalto ao quartel de beja nunca foi divulgado. mas foram muitos mais do que os publicamente conhecidos.

nos jornais da época regista-se sobretudo o falhanço da intentona e a morte do subsecretário de estado do exército, coronel jaime filipe da fonseca, atingido a tiro quando saía do carro junto ao quartel – nunca se esclareceu o porquê da sua presença.

o golpe falhou. pela primeira vez, oficiais do exército foram entregues à pide. os que conseguiram fugir (incluindo edmundo pedro, manuel serra e eugénio oliveira) acabariam por ser apanhados. foram julgados e condenados. humberto delgado não. mal a coisa começou a dar para o torto, deixou beja – diz-se que saiu de portugal, disfarçado, no comboio ‘foguete’ – começou aí a missão de rosa casaco, que terminou como se sabe.

henrique calapez silva martins nasceu em silves no dia 6 de março de 1918. completou os estudos na escola do exército e foi o primeiro oficial português a desembarcar em timor depois do armistício, em 1945, integrado na força internacional que devolveu a portugal a soberania sobre o território ocupado pelas tropas japonesas. deixou timor, onde içou a bandeira portuguesa, em 1946, para cumprir missão em moçambique (1948-49). esteve depois em tomar (onde foi colega de armas de varela gomes, com quem, aliás, jogava ténis) e em abrantes, antes de ser colocado (em 1950) no regimento de infantaria 3 em beja, onde passou a 2.º comandante em 1960. durante a guerra colonial, comandou o batalhão de caçadores 505, no catete, angola (1963-65), e cumpriu missões em cabo verde (comandante militar da ilha, 1967-69) e na guiné (presidente do supremo tribunal militar, 1969-70).

regressou a beja em 1970, para comandar o drm até 1973, ano em que foi eleito deputado à assembleia nacional. nos arquivos digitais do parlamento não há registo de intervenções, mas na cronologia do site abril de novo é-lhe atribuída em janeiro de 1974 a defesa da «necessidade premente da actualização do sistema penal a todos os actos de subversão e de terrorismo praticados no país».

no dia 11 de março de 1975, o coronel calapez é preso na sua residência em beja. recusa cumprir a ordem do primeiro mandado de captura por não estar assinada por um graduado superior. ao segundo mandado, assinado por rosa coutinho, o ‘almirante vermelho’, apresenta-se no quartel de beja, de onde é transferido primeiro para pinheiro de cruz e depois para a prisão de caxias.

silvério é o nome do seu carcereiro. um silvense de origens humildes e cuja mãe, desde que enviuvou e ficou a seu cargo com numerosa prole, o pai do coronel calapez ajudara.

henrique martins, o pai, foi um emérito republicano, maçon e filantropo, amigo e correligionário de afonso costa, que liderou o partido democrático no algarve durante a 1.ª república. no estado novo, liderou a oposição a salazar na região e resistiu sempre à perseguição do regime ao jornal de que era proprietário e director – a voz do sul, cuja linha editorial crítica lhe valeu o veto dos anunciantes e a permanente censura.

curiosamente, henrique calapez foi delegado da comissão de censura em beja (como consta da sua ficha parlamentar: foi também comandante distrital da legião portuguesa de beja, adjunto da defesa civil no território do distrito, director do centro de milícia da lp bejense e adjunto da delegação provincial do baixo alentejo da legião portuguesa).

silvério tornou menos difíceis os meses de reclusão do coronel em caxias. e permitiu, por exemplo, que a família assistisse à troca de alianças e de votos nas bodas de prata de henrique calapez com delfina neves, a sua companheira em mais de 50 anos de casamento, que esteve com ele sempre, mesmo durante a guerra colonial, e com quem teve cinco filhos, sete netos e uma bisneta.

calapez sempre reservou público e honroso silêncio sobre a sua versão dos acontecimentos em que, sozinho, logrou frustrar o assalto ao quartel de beja. apesar do falhanço, amílcar cabral referir-se-lhe-ia como «mais uma vitória do povo português» (meses antes ocorrera o assalto ao santa maria).

em 1987, por ocasião da presidência aberta ‘alentejo verde’, mário soares, à chegada a beja, diria: «se não fosse um tal de major calapez, o 25 de abril teria sido 15 anos antes».

o coronel, na reserva, pegou na medalha que lhe fora atribuída por proposta do governo e devolveu-a ao então primeiro-ministro, cavaco silva, explicando em carta, em súmula, que prescindia dela – até porque tinha muitas outras (de comportamento exemplar, grau de ouro, comendador da ordem de avis, cinco de campanha por timor, moçambique, angola, cabo verde e guiné, duas da legião portuguesa, duas de mérito militar e duas de valor militar).

henrique calapez silva martins faleceu no sábado. teve honras militares, mas só familiares e amigos acompanharam a sua última viagem.

mario.ramires@sol.pt