As horas

O cansaço procura vencer o inconformismo e levar o país para o poço sem fundo de um resgate sem futuro.

escrevi aqui mesmo há alguns meses: «não consigo prever a dimensão das manifestações deste sábado. não têm termo de comparação. em portugal, elas costumam ser convocadas por partidos, sindicatos ou associações e nunca por quatro criaturas que um jantar tornou particularmente imaginativas. por outro lado, o hábito nas convocatórias é o do folheto de propaganda, o carro de som e, vá lá, o sms; por facebook, já se tinha visto noutros cantos do planeta, mas não por cá».

depois, acrescentei: «não se sabe quantos estarão porque os que estiverem virão pelos seus próprios meios e não à pala de comboios e autocarros contratados para o efeito. assim, há muito não se fazia (…) quando apresentei a ‘coisa’ em estrasburgo, tentei resumir: gente que se endivida para estudar, que quase paga para trabalhar e que é obrigada a sobreviver com 500 euros». assim dito, é muita gente, talvez metade da força de trabalho deste país. mas os quatro jovens incluíram também as mães e os pais e isso faz uma ‘nação à rasca’.

continuo pelas estradas sinuosas da minha imaginação: «há dois ou três anos, a palavra ‘precariedade’ era um palavrão. agora, o ‘desemprecariado’ entrou na agenda mediática. esta mudança correu lentamente até que uma canção a popularizou num refrão de mil vidas: ‘mundo parvo este, onde para ser escravo é preciso estudar’. eu não sei se as manifestações vão ser grandes ou pequenas. gostaria mesmo muito que fossem das maiores que a memória guarda. mas sei que há algo em gestação e que é independente dos números – este país está de novo a mudar, a entrar num período em que a resignação e o conformismo vão ceder o seu lugar à indignação. o que sucedeu no festival da canção com os homens da luta é igualmente sintomático do grau de exasperação a que as pessoas estão a chegar. uma cadeia de acontecimentos extraordinários está-se, lentamente, a formar. ela anuncia um acerto de primeira grandeza – o que faz coincidir as horas com o tempo. da internet para a rua, uma nova geração vai ocupar o palco. já não era sem tempo».

terei tido razão? a 5 de junho se saberá. ponho em cada letra deste texto toda a convicção. não sei se os portugueses serão capazes de prolongar a 5 de junho a energia que transbordou a 12 de março. mas sei que é dela que precisamos agora e não me digam que instrumentalizo.

o que se está a passar é mau demais para ser verdade. o cansaço procura vencer o inconformismo e levar o país para o poço sem fundo de um resgate sem futuro. mas o mesmíssimo cansaço também pode ser lido e entendido do avesso. cansados sim, mas deles, os que nos condenam a pagar o que não devemos.