Dança com números

De acordo com o ministro, o novo imposto cobre, por via da receita, um ‘desvio’ de mil milhões de euros nas contas do Estado. Sucede que estes mil milhões eram, uns dias antes do seu anúncio, e voltaram a sê-lo desde domingo passado, dois mil milhões de euros. ‘Um número redondo’, como reconheceu o próprio…

o novo imposto responde, portanto, a uma necessidade ‘redonda’, para usarmos o novo léxico governamental. há duas semanas, justificava-se por ‘um desvio colossal’ nas contas; na conferência de imprensa, o ‘desvio’ deixou de ser ‘colossal’, embora ‘colossal’ devesse ser o seu esforço de correcção. finalmente, desde domingo, o primeiro-ministro estabeleceu a ortodoxia: tudo é ‘colossal’.

muitas foram as doutas opiniões. apreciei particularmente a de um dos novos epígonos do governo nas televisões – confesso não ter decorado o nome – segundo o qual o novo imposto seria ‘uma almofada política robusta’, ou seja, um acto de genialidade executiva. não posso estar mais de acordo. o governo acabou de inventar uma figura para a qual não existe ainda moldura penal: ‘assalto ao contribuinte por motivo de prudência orçamental’.

a coisa foi apresentada como ‘universal’ e ‘equitativa’. bem… ‘universal’ parece difícil porque ficam isentos os rendimentos abaixo do salário mínimo… e outro tanto sucede com os lucros das empresas e os dividendos e juros resultantes de aplicações de capital. ‘equitativa’ dificilmente será, porque a sobretaxa não é progressiva. o facto de se aplicar após subtracção do salário mínimo e dos benefícios e deduções fiscais mitiga efectivamente o seu efeito sobre os rendimentos mais fracos. mas isto só é verdade se abstrairmos do efeito dos cortes na despesa social, previstos no memorando de entendimento, que incidem em particular sobre os rendimentos mais frágeis. por outro lado, manda a franqueza que se reconheça que este procedimento… é um maná para quem pode recorrer à infinita sabedoria das ‘contabilidades criativas’.

finalmente, este imposto dificilmente será ‘extraordinário’. com efeito, é longa a lista de espera dos milagres por realizar e não consta que este tenha prevalência na bicha. como reconheceu o ministro, as previsões económicas são, nos dias que correm, ‘particularmente incertas’. basta que a recessão em 2011 seja pior do que a prevista pela troika para que as receitas fiscais de 2012 se ressintam disso mesmo. como as últimas projecções do governo já apontam para uma queda de 2,3% no pib, é certo e seguro que continuará, no próximo ano, a aplicar ‘medidas extraordinárias’. a avaliar pelo ensaio, não lhe faltará nem a arte nem o engenho…