Polícias & ladrões

Mark Duggan, 29 anos, foi morto a tiro pela polícia britânica. Esta alegou legítima defesa. A família e a população do bairro não acreditaram. Manifestaram-se pacificamente na noite da ocorrência, em frente à esquadra local, e as primeiras provas forenses vindas a público parecem dar-lhes razão.

que liga estes factos à revolta que entretanto alastrou a várias cidades inglesas? aparentemente tudo: a morte desencadeou o protesto e este a primeira razia nocturna de grupos de jovens, contrariando a vontade expressa da família da vítima. a partir daí, vários bairros ‘pegaram fogo’. e quase nada: esta vaga de violência não tem caderno de encargos nem organização que a dirija. é bem provável que a maioria dos envolvidos saiba tanto de mark duggan quanto o prezado(a) leitor(a).

não é a primeira vez. desde os anos 80 que motins deste tipo ocorrem em londres e em paris. ciclicamente, nos bairros mais pobres das periferias e com o seu cortejo de carros incendiados, lojas assaltadas, confrontos com a polícia e detenções em massa. as explicações repetem-se. as forças da ordem, que gostam de verdades infalíveis, atribuem as responsabilidades aos gangs locais. as direitas, por sua vez, aproveitam a situação para assustar as pessoas contra os imigrantes. só os sociólogos e trabalhadores dos serviços sociais escapam a esta litania. não sem argumentos, explicam que o motim é o corolário da violência surda e quotidiana dos bairros do esquecimento, onde a esperança dos jovens morre antes de nascer – é aí que se abandona a escola antes de tempo, que os horizontes de emprego se esfumam, que se depende da economia informal e, não raro, do crime organizado. é. este mundo não é só conto de favela e bairro de lata. em londres, ele é ainda o resultado de um modelo de integração dos imigrantes que deu aos bairros uma forte conotação étnico-comunitária. nestas circunstâncias, juntam-se condimentos raciais ou religiosos aos problemas sociais sempre que estas revoltas ocorrem.

a cada explosão de violência, os poderes respondem com polícia e mais polícia e com posteriores ajustes nos programas sociais. anos depois… a história repete-se. a rua transforma-se de novo num palco onde se reencena a eterna disputa de poder entre gangs de jovens e divisões antimotim. há algo de teatral nesta dança de cinismos cruzados. o poder exibe a sua força para tranquilidade das pessoas comuns; os jovens elevam-se à condição de actores em bairros que só são notícia por motivo de violência. bad news, good news…

até que alguém twittou «comunity, make it count». e, no dia seguinte, as pessoas comuns perderam o medo e desceram às ruas. trouxeram com elas luvas, vassouras e sacos de lixo. limparam a guerra das suas vidas e disseram ao mundo: «o bairro também é nosso». assim deveria ser em todos os bairros.