Heróis

«Já foram heróis, mas hoje são vistos como gananciosos», garante Marcio Resende, jornalista, que escreveu uma peça angustiante sobre os 33 mineiros que no ano passado comoveram o mundo na mina chilena de São José, sobrevivendo 70 dias debaixo de terra, «com duas colheradas de atum, meio biscoito e meio copo de leite a cada…

um ano depois, garante o expresso, tudo mudou. de início, os meios de comunicação pagavam para obter entrevistas e os mineiros não se fizeram rogados: «muitos acreditaram estar perante uma nova mina de fama e riqueza». hoje, não é assim. a maioria vive de expedientes, sem trabalho regular. outros estão no desemprego. outros ainda pediram a reforma ou sobrevivem de palestras motivacionais. e todos, sem excepção, têm problemas do foro psicológico. aquilo deixou marcas.

porquê se está a arruinar a imagem dos heróis? não sei se seja história de que nos possamos orgulhar. certo, os 33 foram indemnizados – o estado cobriu as obrigações dos proprietários, enquanto lhes move um processo que, em teoria, permitirá aos trabalhadores «obter outra indemnização milionária». a opinião pública chilena, prossegue o jornalista, sabe que os mineiros realizaram 14 viagens pagas pelo mundo e que vários deles assinaram contratos para livros e filmes. mesmo «hollywood já assinou contrato para rodar um filme em 2012». por estas razões, grande parte da opinião pública chilena acha que os mineiros «foram suficientemente compensados» e não compreendeu que tenham processado o estado que os resgatou. o processo visa estabelecer um precedente em matéria de direitos, mas não sei se chegou no momento certo. as pessoas que viram neles os rostos de um milagre colectivo não devem apreciar particularmente atitudes dirigidas contra a mão que os ajudou no infortúnio. mas… por outro lado, porque devem os heróis gerir a sua imagem? afinal, aquilo não foi um reality show. é aí, e não na vida real, que o cálculo elege os vencedores.

eis porque esta reportagem me angustia: é sobre nós. vivemos um tempo em que os heróis e as histórias com fim feliz não abundam. a epopeia dos 33 deu a um mundo comovido e a um país em défice de orgulho, uma prenda saída do armazém dos milagres. aos nossos olhos, os 33 deviam ser como nos filmes, exemplos de virtude sem mancha. sucede que eles são gente como nós, vulgares que viraram heróis porque colocados em circunstâncias únicas e irrepetíveis. mal saíram da mina, agiram como humanos e não como deuses. fizeram como nós teríamos feito, em circunstâncias similares. eis o pecado que corrói a sua imagem: excesso de humanidade.