Morrer todos os dias descansa

A minha fé vacila regularmente. Para ser mais preciso, vacila todos os dias, durante uma – desejável – média de oito horas. E nem me dou conta dessa dúvida. Estou a dormir.

e quando durmo não se passa mesmo nada. nunca me lembro dos sonhos, exceptuando os ocasionais e raríssimos flashes de momentos perfeitamente incompreensíveis. logo, a única conclusão possível é esta: morro todos os dias.

ora, se todos os dias o nosso cérebro basicamente se desliga – e, fazendo fé na média das oito horas, durante um terço da nossa vida passamos por um estado de nada e em nenhures, fica a pergunta vestida pela ingenuidade de uma criança: por que razão, depois de morrermos, haverá algo diferente disto?

talvez a resposta esteja nas insónias. o escriba é dado às ditas. neste preciso momento, escrevo com duas noites brancas em cima e após ter percorrido 2.800 km numa semana. se dormir é morrer, não adormecer mata. dói-me cada centímetro do corpo e escrevo frases com a mesma agilidade de um caracol que caiu num copo de sangria. cada ideia, imagem, parágrafo é um parto a ferros. morrer todos os dias descansa, essa é que é essa. e assim se confirma uma máxima antiga: a morte é o descanso eterno.

se assim for a eternidade, uma cama gigante com lençóis de seda e almofadas avulsas para abraçar todo o sempre fora, magnífico. até sou homem para armar à estrela rock e ‘only sleep when i’m dead’. sobretudo quando penso que, se passei um terço da vida a dormir, então ainda só tenho 22 anos. agora, se me dão licença, vou ali tentar descrer em deus durante – desejavelmente – oito horitas.

ii – apologia involuntária da droga

adoro documentários biográficos e é fácil descobrir o padrão: muito boa gente honrada com a dignidade de um trabalho destes sobre si própria atravessou uma fase negra devido à dependência: ou álcool, ou drogas, ou analgésicos, ou sexo, ou tudo ao mesmo tempo. nos documentários vocacionados para o final feliz, é certo e sabido que o guião seguirá esta linha: espiral do protagonista até ao fundo do poço e depois ascensão das cinzas qual fénix desintoxicada.

fazendo o escriba parte de uma verdadeira geração de leitinho com chocolate – em bom rigor, não conheço um único comediante viciado em algo mais além de café e cigarros, dá muitas vezes por si em viagens homéricas entre actuações, estafado, moído, a ter esta conversa com os compadres: ‘então e nós, pá?’.

é que esta coisa de louvar as estrelas cadentes que conseguiram inverter a tendência e limpar-se do vício é muito bonito, inspirador e tal, mas faz com que admiremos subtilmente essa sua jornada. quase como se a dependência fosse uma etapa (certamente de montanha) fundamental em qualquer trajecto artístico.

de modo que a malta que escreve, grava, apresenta, viaja, actua e o diabo a quatro sem ajudas extra… acaba por se sentir ostracizada. fazer isso tudo com drogas, caros amigos, é fácil. para quando os documentários sobre a malta que não usa, hmm?

iii – o último acto de coragem é ser romântico

não compreendo o esquema mental de quem trai. devo ser antiquado mas, por muitas voltas que dê à cabeça, não percebo como conseguem essas pessoas dormir.

já me relacionei com um indivíduo casado há 20 anos que chegava a usar a clássica desculpa do ‘vou ali comprar cigarros’ para uma visita de médico a casa da amante. morava na mesma rua. quando a mulher lhe perguntava pela demora dizia que tinha encontrado um amigo com quem ficara à conversa. dou por mim a afastar-me deste tipo de gente, com um estranho sentimento de culpa. sim, é que uma coisa é a amizade que nos une, verdade, outra a sua vida privada – e já agora, como diz o povo, ‘entre marido e mulher não se mete a colher’. mas torna-se desagradável quando conhecemos a pessoa. quando nos vemos na posição de espectadores de um teatro de enganos, de bilhete pago não com dinheiro mas com pena/piedade/comiseração/vergonha, todos os piores sentimentos que se podem nutrir por seres humanos.

agarro-me por isso cada vez mais ao exemplo dos leais, dos fiéis, ou dos que têm a dignidade de estar sozinhos quando sabem que, juntos, seriam a má companhia de outrem. sim, sei do mundo em que vivo. das facilidades e tentações nesse cocktail de fama, deslocações e redes sociais. mas quando se gosta não se trai, ponto final parágrafo.

casar com a pura intenção (e vontade) de respeitar os votos, na saúde e na doença, é de homem. ser romântico, no sentido mais potencialmente piroso de mimar e compreender o outro, aceitar os seus defeitos e esperar que entenda os nossos, é um acto de coragem verdadeira. o mundo não está para eles, olha-os de soslaio ou com a admiração basbaque com que se vêem animais raros no zoo. mas estou-me nas tintas. dêem-me qualquer valente discussão com a pessoa que amo, prefiro-a de longe à mentira. até porque sei que, no dia seguinte, passado o azedume, terei aprendido algo útil – e que eu e tu, juntos, somos mais que dois.

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