O ano horribilis de Salazar

Há cinquenta anos, em 1961, o distrito de Setúbal, como quase todos os outros, tinha um só liceu. Era frequentado pela minoria que ao tempo tinha acesso ao ensino secundário, e cujos familiares não podiam pagar colégios privados mais perto de casa.

os que naquela manhã vinham de comboio do barreiro, enquanto viam aparecer um sol gelado de janeiro, souberam do assalto ao santa maria.

não imagino há quantos dias teria acontecido já.

o barreiro era uma cidade de grande implantação fabril, a cuf tinha aí a maior parte das suas fábricas, era portanto possuidora de um nível de politização maior do que a maioria do país.

um grupo de 24 homens, portugueses e espanhóis, tinha-se infiltrado em portugal entre os 600 passageiros do navio e aguardava a entrada do comandante, capitão henrique galvão, que só se lhes juntaria mais tarde em curaçau, vindo do exílio onde se encontrava, na venezuela.

pela primeira vez tinha lugar no mundo um assalto a um grande meio de transporte com objectivos políticos.

este foi, para o mundo ocidental, o primeiro sinal visível de que portugueses e espanhóis estavam dispostos a combater juntos as ditaduras que os dominavam.

e os portugueses tinham ainda o problema do império por resolver.

durante o assalto ao paquete, um jovem piloto, joão nascimento e costa, tentou resistir e foi abatido.

toda a geração dos que vinham no comboio do barreiro fora educada para fazer dele o seu herói – um nuno álvares pereira dos tempos modernos.

só que, na minha opinião, estava do lado errado da trincheira. mas quantos de nós não estávamos?

era objectivo dos ocupantes rumar a áfrica, e a partir de luanda desencadear a luta contra as duas ditaduras ibéricas.

da ocupação resultaram dois feridos, entre os assaltantes, que os nossos piratas humanistas tinham necessidade de deixar em porto seguro.

deambularam vários dias pelo oceano, perseguidos por vasos de guerra e aviões, até os deixarem na ilha de santa lúcia.

a localização do navio era a partir deste momento totalmente conhecida – mas o mundo falara já daquilo que salazar e franco queriam manter em silêncio.

e, portanto, um dos objectivos da operação fora atingido.

um jornalista brasileiro, ludenbergue góes, acaba de publicar um livro – o sequestro do santa maria: um sonho de liberdade – aproveitando o 50.º aniversário da primeira actividade de pirataria com objectivos de libertação de povos.

naquele ano de 1961 começava o processo doloroso do princípio do fim do império colonial português, que só terminaria em 1974.

ainda os ecos deste acontecimento se ouviam nas rádios e televisões de todos os países livres e já a 4 de fevereiro, dos musseques de luanda, vem pela calada da noite um punhado de heróis anónimos, sem significativa direcção politica, atacar o presídio militar da capital – onde outros nacionalistas presos aguardavam transferência para o tarrafal ou para lisboa.

era o princípio da guerra de libertação.

em dezembro do ano anterior, a união indiana anexara os enclaves de goa, damão e diu, facto que o governo português só assumiria em 1974.

este foi o ano horribilis do vetusto regime salazarista.

ter percebido os sinais que vinham de todos os lados, na mesma direcção, ter-nos-ia permitido evitar uma guerra de 13 anos, milhares de mortos de ambos os lados e uma descolonização muito menos traumática, bem como duas guerras civis.

observando o que se passa hoje em portugal, temo que os que detêm o poder em tempo de crise não dêem atenção aos sinais de alerta que lhes são fornecidos todos os dias.

este povo é sábio, mas não é fabricado de gelatina.

cinquenta anos depois do assalto ao paquete santa maria, é bom não esquecer de que têmpera somos feitos.

catalinapestana@gmail.com