ao meu lado no avião, um jovem emigrante madeirense culto, de regresso à ‘pátria’ via lisboa, foi metendo conversa, que aqueceu e durou quase toda a viagem.
parecia ter pensado longamente sobre o fenómeno:
«que o pessoal mais velho continue a votar jardim, eu ainda posso entender. ele foi inventado pelo bispo santana nos finais dos anos setenta, foi levado pela sua mão de paróquia em paróquia e mostrado ao povo como o novo rosto do salvador.
sabe que o povo da madeira é muito religioso, e não sabia nada disso de democracia. no princípio, votou naquele que a entidade mais credível lhe indicou.
depois, o poder da república, dividido alternadamente entre psd e ps, foi fazendo o resto. qualquer deles precisava sempre dos votos dos deputados da madeira, ou para aprovar orçamentos ou para gerir questões internas. foram cedendo alternadamente às exigências do alberto joão. a dívida foi perdoada várias vezes, mas como havia muito dinheiro ninguém parecia importar-se com o facto.
isto de ter saído da minha terra para trabalhar ajudou-me a vê-la a uma luz diferente.
a maioria do povo na madeira mantém uma forma de estar na vida muito feudal. vive ligada à terra, como viviam os servos da gleba nos tempos idos da idade média, submete-se ao senhor feudal, porque ele, embora prepotente, lhes pode oferecer protecção, e como os tempos já não são medievais oferece uma protecção bem florida e enfeitada de aparências de desenvolvimento.
«a utonomia é na madeira uma palavra com sentido equívoco, porque poucos cresceram para o exercício da cidadania consciente e livre. autonomia é palavra de ordem populista com a qual o povo foi engodado durante mais de trinta anos.
usando a frase de um frade que conheci através da televisão, na madeira a maioria de nós somos ‘cidadãos não praticantes’.
delegamos no alberto joão o direito de escolher o que ele pensa que é melhor para todos.
somos uma espécie de crianças grandes.
sair da ilha ao princípio faz-nos medo. só poucos o tentaram recentemente – e a maior parte desses, da minha idade, quando conseguem vencer o medo gostam muito.
o que eu não percebo é a votação no coelho.
«parece que voltámos à roma decadente: pão e circo. túneis, estradas que vão dar ao nada, marinas sem barcos e carnaval. carnaval em muitas épocas do ano. no ano novo, na festa da flor, no entrudo mesmo.
as dez maiorias absolutas do dr. jardim dignificaram a total delegação de competências na sua pessoa para o exercício da nossa cidadania.
se eu tivesse ficado a trabalhar na madeira teria que ter por patrão o presidente do governo regional, directamente ou através de uma qualquer empresa de um dos seus boys travestidos de deputados regionais.
gosto muito da minha terra, mas não estou disposto a voltar lá sem ser nas férias, ou para ajudar a construir a mudança.
vou ver como reagem as hostes quando começarem a perceber que sem muito dinheiro o salvador tem pés de barro.
«vou ver o que acontece quando eles entenderem que do pão e do circo só resta um circo degradado, invadido por coelhos famélicos amestrados a lutar contra bocassas convencidos que ainda são senhores do poder.
avizinham-se tempos difíceis para a minha gente.
a aprendizagem da democracia vai começar agora, no pior momento e nas piores condições.
vai ser um tempo de crescimento, e crescer dói… dói muito.
se encontrar parceiros dispostos a ajudar a minha ilha a dobrar o cabo das tormentas, sem desistirem à primeira tempestade, talvez fique. se não…».
o chefe de cabine dizia: «senhores passageiros, vamos começar a nossa descida para lisboa…».
nem sequer tive tempo de perguntar o nome ao meu companheiro de viagem. ele saiu a correr para apanhar a ligação no terminal 2 da portela. eu, que ficava em lisboa, enquanto esperava pela bagagem fui pensando numa frase que ele também atribuía ao frade seu conhecido que neste verão fez várias intervenções televisivas: «os políticos, como as fraldas, devem ser substituídos frequentemente. e pelos mesmos motivos».
como eu subscrevo o que ela significa!