‘O Sócrates tem de dar uma sticada na gaja’

A investigação do Ministério Público (MP) e da Polícia Judiciária de Aveiro sobre o empresário Manuel Godinho revela uma teia de influências ao mais alto nível. Nesta, emerge como figura central Armando Vara, com acesso directo ao primeiro-ministro e a membros do Governo

Ex-dirigente do PS, amigo de longa data de José Sócrates e banqueiro, por Armando Vara passam os negócios PT/TVI, PT/Taguspark e Associação Nacional de Farmácias, entre outros. E ainda as pressões para demitir a secretária de Estado dos Transportes e o presidente da Refer (Rede Ferroviária Nacional) e evitar a demissão do presidente da CP, Cardoso dos Reis.

Em cada um destes casos, que se desenrolam ao longo de 2009, moveram-se todas as influências possíveis para ter as pessoas ‘certas’ nos lugares certos.

Ou para fazer rolar a cabeça de outras, como aconteceu com Ana Paula Vitorino: aquela que era vista até aí como sucessora de Mário Lino, atravessou-se no caminho, ao proteger o presidente da Refer (Rede Ferroviária Nacional) que tinha um contencioso com Manuel Godinho.

Este empresário, que acumula um historial de fuga ao Fisco e casos duvidosos no âmbito de concursos para a recolha e tratamento de resíduos industriais, movia-se bem ao nível dos quadros médios de empresas públicas (como a REN, a EDP e a Refer). Estes informavam-no antecipadamente dos concursos e negociavam directamente com ele a contratação de serviços e a forma de ludibriar as autoridades.

Terá sido através de um deles (Carlos Vasconcelos, da Refer) que Godinho conseguiu aceder a Fernando Lopes Barreira (empresário da área do PS, também arguido no caso) e aos amigos deste: Armando Vara e Mário Lino.

Acusado de ter roubado carris na linha do Tua e de sobrefacturar serviços, Godinho tem um longo contencioso com a Refer (empresa pública da rede ferroviária nacional). O conselho de administração desta – presidido por Luís Pardal – deu ordens, informalmente, para que às empresas de Godinho (grupo O2) não fossem adjudicados mais concursos.

Mas, para Godinho, Pardal só fazia isto porque tinha o apoio da tutela, a secretária de Estado Ana Paula Vitorino. O objectivo que passa então a mover Manuel Godinho e os seus colaboradores fica bem ilustrado no desabafo que tem, numa conversa telefónica com um dos outros arguidos no ‘Face Oculta’: «Enquanto a gaja lá estiver, é uma chatice!».

As diligências para afastar Vitorino começaram em Janeiro de 2009 e durariam até ao Verão (quando o empresário percebeu que o seu objectivo era já impossível de concretizar, dada a iminência das eleições legislativas).

Segundo o MP, Lopes Barreira e Armando Vara aceitaram ser os pontas-de-lança junto do Governo: enquanto Barreira telefonava a Mário Lino, ministro das Obras Públicas (tutela de Vitorino), Vara ligava a José Sócrates.

E por isso estão ambos indiciados neste processo por crimes de tráfico de influências – estando o MP convicto de que Godinho pagou a Vara e Barreira, a cada um, 25 mil euros.

No dia 10 de Fevereiro de 2009, Carlos Vasconcelos, quadro da Refer (e arguido) definia bem a situação: «A gaja agora atirou-se ao Sócrates na história do Tua [polémica sobre a recuperação desta linha de comboio, em Trás-os-Montes]. Ó pá, o Sócrates tem de dar uma ‘sticada’ na gaja. É que isto está de facto a entrar por um caminho preocupante».

‘Pardal tem os dias contados’

Três dias antes, porém, Manuel Godinho tinha almoçado com Vara, na casa deste em Vinhais. Por isso, estava convencido de que «as coisas estão a ficar melhores», como diz para Manuel Guiomar (funcionário da Refer, também arguido), no dia 5 de Março. José Valentim, outro quadro da Refer, sintetizava a situação: «Os gajos não têm mão no Pardal», mas este «tem os dias contados, isto é uma questão de dias, de certeza».

A juntar à crise, o empresário via diminuir as os concursos adjudicados às suas empresas. «Estou aflitíssimo» – confessa a Paulo Penedos (advogado e também arguido no Face Oculta), referindo-se à «falta de trabalho». Para resolver a situação, diz que vai telefonar a Vara, «a ver se ele dá um empurrão aqui, um empurrão acolá».

Quem também desenvolve contactos é Lopes Barreira, que alardeia a sua facilidade em falar com o ministro Mário Lino (Obras Públicas) e com Jorge Coelho (outra figura socialista), e de chegar a José Sócrates.

A 11 de Março, Barreira promete a Godinho que vai falar ao vice-presidente do BCP: «O Armando agora, com as relações com Angola [Vara era presidente do BCP Angola], o gajo pode arranjar umas coisas bestiais para si. Presidente de um banco, tão importante como aquele, que está metido nos mais variados negócios, pá, e o senhor é um homem de negócios… Eu, no fim-de-semana, vou-lhe telefonar e dizer ao gajo ‘oh pá, o sr. Godinho tem de ser priorizado, não pode andar a sofrer aqui eternamente’. Tanto o Jorge como ele: eu vou falar com os dois».

Até Ana Paula Vitorino foi visitá-lo ao hospital – salienta Barreira que esteve doente nesta época: «Foi anteontem. Disse-me ‘andamos um bocado de candeias às avessas, mas temos que falar disso’».

Lopes Barreira toma as dores de Godinho, diz que percebe bem a situação do empresário de Ovar, pois ele próprio ainda não conseguiu receber «dois milhões e meio da RAVE» (empresa pública da Rede de Alta Velocidade, também sob a tutela de Vitorino).

A 10 Abril, Lopes Barreira informa Godinho de que «a Ana Paula Vitorino vem cá almoçar comigo, a minha casa, segunda-feira» e que também tinha falado «com o Lino». «Mas o gajo [Luís Pardal] não faz cedências, continua a lixar-nos. Ele tem indicações de alguém, de certeza» – queixa-se Godinho. «Eu não faço ideia. O Sócrates sabe perfeitamente o que se passa», responde Lopes Barreira.

Pelo meio, Vara vai falando também com Godinho. A 28 de Maio, ocorre o telefonema que o Ministério Público (MP) considera ser a prova de um pagamento. Numa conversa cifrada, Godinho pergunta a Vara se «aquilo dos 25 quilómetros» era «para agora» – e o MP considera não haver dúvidas de que estavam a referir-se a 25 mil euros em ‘luvas’.

Em 5 de Junho, Vara telefona a Manuel Godinho, para saber se já tinha falado «lá com o homem da Refer».

O empresário de Ovar responde que não e anuncia-lhe que sabe que o Tribunal da Relação do Porto lhe vai dar razão no processo da Refer.

‘Vou pôr a questão ao Lino’

No dia 15 de Junho, Godinho comunica também a Lopes Barreira que ganhou este processo judicial. Acha que agora «é possível uma reconciliação»: «Se eles me derem os trabalhos que me tiraram, calo-me bem calado». «Então vou dizer ao Lino, logo já lhe telefono», garante Lopes Barreira. Godinho pede-lhe também que «telefone ao nosso amigo» (Vara).

Com a decisão da Relação, que o MP de Aveiro suspeita ter sido um favor, o grupo pensa convencer Mário Lino da inocência de Godinho e assim afastar Pardal e a secretária de Estado.

Godinho, Lopes Barreira e Vara combinam então um almoço – que se realizou a 20 de Março, na casa do primeiro, em Ovar. O MP defende que foi nesta ocasião que Manuel Godinho pagou 25 mil euros a cada um.

No regresso a Lisboa, Lopes Barreira telefona a Godinho para lhe agradecer o almoço. E renova a promessa de falar a Mário Lino: «Aquilo que o Armando lhe disse, eu concordo, pá, que isto não pode ficar assim, tem que se ver aí… Eu até ia fazer uma coisa que fica aqui entre nós, nem diga nada ao Armando: ia pôr a questão ao Lino, hum?». «Sim, é isso que eu pretendo, tá a ver» – concorda Godinho. O ministro «é bom rapaz», explica Barreira, «mas quem manda é ela» (Ana Paula Vitorino). «Ela está completamente queimada, mas não fazem nada. O Sócrates é contra ela, ele diz mal dela…». «Mas compreende-se a posição do chefe neste momento», responde Godinho, referindo-se à proximidade das eleições legislativas.

No processo judicial, a Refer tinha entretanto recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Godinho fala então com o seu advogado, Melchior Gomes (também arguido no Face Oculta) e pergunta-lhe se o processo no STJ ainda pode ter um desfecho que lhe seja desfavorável.

O advogado responde que não – mas «vamos estar atentos: a gente conhece lá muita gente e boa». «Pronto, é isso que temos que ver. Ou é necessário falar?» – questiona Godinho, explicando que o «outro senhor… ahm, que eu mandei o processo para analisar, diz que não há hipótese nenhuma de recurso».

Percebe-se que se refere a Armando Vara: «Eu, no sábado, estive com algumas pessoas [Vara e Lopes Barreira] e o que me disseram é que nós deveríamos reagir, ir para a comunicação social», explica Godinho.

Decide então com o advogado que iriam fazer «uma carta» para enviar a alguns jornais e à RTP. Isso funcionaria como forma de pressão: diriam que «a intenção da O2 é mover um processo-crime contra o senhor presidente e vice-presidente [da Refer], com pedido de indemnização de cinco milhões de euros».

‘Isto não vai acabar bem’

Manuel Godinho tinha entretanto conhecido Manuel Rodrigues, um empresário com ligações aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Lopes Barreira sabe e comenta com Godinho as perspectivas: «O Manel é muito boa pessoa e é muito meu amigo. Agora é um dos braços direitos do Amorim. O senhor tem algum dificuldade em Viana do Castelo? O Manel mexe-se totalmente bem aí». «Mas aquilo está parado», admira-se Godinho. «Eu sei, eu sei» – diz Barreira – «mas se tiverem alguma sugestão para porem aquilo a funcionar outra vez, diga-me que eu falo com o secretário de Estado, pois eu dou-me bem com o gajo, pá. Se o sr. tiver alguma ideia para aquilo, a gente vai tentar falar com ele».

Por esta altura, Godinho e os seus homens já andam desiludidos com o dossiê Refer/Vitorino. Sabem que a proximidade das eleições legislativas lhes é adversa e, além disso, o PS tinha sofrido uma pesada derrota nas europeias. «Sócrates está quietinho, nem se quer mexer», diz Carlos Vasconcelos.

E «Mário Lino, das reformas que queria (o aeroporto, o TGV), meteu a viola no saco em tudo», «não avançou com nada», responde Godinho. «Eu não me acredito que haja mudanças agora, antes das eleições. Ele foi burro. Ele devia ter feito as eleições antes. Agora, olha, temos que esperar», remata Godinho.

Pelo meio, Vitorino é referida em termos insultosos, fazem-se insinuações à sua vida particular e até que o seu percurso pelo Governo tinha sido «altamente produtivo».

Em finais de Julho, Lopes Barreira telefona a Godinho, dizendo que vai chatear Mário Lino: «A gaja anda-nos a perseguir a ti e a mim, a nós, e perseguições destas não as admito seja a quem for. Somos pessoas de bem e queremos trabalho, pá…». «Exactamente», conclui Godinho. «O Lino ligou-me ontem e eu disse-lhe: a culpa é tua porque tu és o chefe e não tens coragem para a pôr na ordem». «Mas também agora isto tá a acabar ó senhor doutor. Até aí para os nossos amigos não vai acabar bem. Eles estão convencidos de que vão ganhar as eleições e isto há um descontentamento muito grande», conclui Godinho.

A 29 de Julho, Godinho confidencia a Carlos Vasconcelos: «Eu estou lixado com isto, sinceramente, estou mesmo desiludido com muita gente».

paula.azevedo@sol.pt  e felicia.cabrita@sol.pt