A revolta dos pacíficos

O estômago já não dói tanto! A dor não aguda mas crónica já permite pensar nas suas causas e nos eventuais remédios para a curar.

a alguns, os mais fortes ou os mais jovens, já permite mesmo que tenham começado a mexer-se, e a dar sinais bem visíveis de que estamos todos muito mal tratados, mas ainda estamos vivos, e alguns dispostos a não depor as armas.

vivos, zangados, mas lúcidos, tão mais lúcidos quanto não estávamos há mais de 30 anos.

queremos escrutinar até à exaustão o que vão fazer com o nosso dinheiro, e sobretudo com o dinheiro daqueles que têm muito menos que nós, os políticos que elegemos e que continuam a desgovernar-nos.

deixei de acreditar na conversa de qualquer político – que, tendo-se preparado para exercer essa profissão, aprendeu na formação inicial as várias técnicas de mentir ao povo, por muito bem que organize o discurso e por muito bom que seja o timbre da sua voz.

se nos calarmos, se deixarmos esta catástrofe avançar sem que nos oponhamos a esse avanço, estaremos a colaborar num percurso que, para milhões de portugueses, corresponde a uma subida ao calvário sem qualquer sentido.

soa por aí que as verbas referentes aos subsídios de férias e de natal que vão ser roubados nos próximos dois anos a todos os aposentados se destinam a pagar os buracos financeiros do bpn, da madeira e das parcerias público-privadas.

onde está o dinheiro do bpn? onde estão os responsáveis por essa gestão criminosa?

a dona branca, que comparada com cada um deles foi uma benemérita do povo, foi julgada e cumpriu a pena a que foi condenada. os tubarões deste país roubam-nos, arrastam para a miséria, para o desespero e muitas vezes para o suicídio milhares de portugueses, e nada acontece. com sorte, alguns ainda aparecerão nas próximas encarnações em retratos de família enquadrados por um qualquer jardim de são bento.

é curta a memória dos homens. os mais fortes e os mais jovens já começam a dizer ‘basta!’. é ainda com uma voz titubeante, mas audível.

é preciso não os deixar a falar sozinhos, sujeitos a pequenos bandos de marginais que procurarão infiltrar-se para desacreditar as várias lutas. como sabemos, estes grupos existem para isso e são pagos para isso.

aquando das lutas académicas de 1968/69, em lisboa, estranhei ver muitas vezes por lá um engenheiro muito grande, cara de gigante bom, máquina fotográfica a tiracolo, atento mas discreto.

conhecia-o de outras guerras, e os meus vinte anos interrogavam-se sobre o que faria ali alguém com o dobro da minha idade, que nem sequer era estudante.

um dia perguntei a um amigo comum o porquê da presença quase permanente do gigante bom, para mim fora do contexto. a resposta veio imediata: «está lá para se for preciso».

juventude! há ‘cotas’ de cabeça saudável que já resistiram a muitos vendavais e que vale a pena não pôr totalmente de parte. mesmo quando, discretos, só forem levar laranjas aos que resistem no desconforto de um acampamento improvisado, tristes por serem poucos, mas sendo sinal. metam conversa – porque eles, os mais velhos, os mesmo velhos, podem não falar só por timidez, porque esta sociedade que construímos para vos deixar em herança considera que os velhos são só um empecilho ao vosso ritmo de vida e não vale a pena esperar por eles, nem mesmo nas ‘manifs’.

o que nos está a acontecer, a nós e aos outros humanos, nos outros países, é um dos grandes desafios da história.

os dois modelos de gestão económica da modernidade faliram, faliram completamente.

é preciso criar outros, que não saiam da cabeça de iluminados, facilmente transformáveis em novos ditadores.

não precisamos de génios, precisamos de gente séria e solidária, que saiba colocar a si própria, pelo menos uma vez por semana, a pergunta: ‘será que eu tenho razão?’

precisamos de «não nos calar, porque se nos calarmos gritarão as pedras», como diz um amigo meu.

precisamos também que o grito da nossa indignação tenha força para ser ouvido no país profundo, mas tenha a contenção necessária para não estilhaçar os vidros que encontrar pelo caminho.

esses vidros, cujo tilintar de estilhaço dá boas aberturas de telejornais, somos nós, ou outros mais pobres ainda que nós, que os teremos de pagar com juros.

mesmo que a raiva seja muita, é preciso trazer para a rua a revolta dos pacíficos.

catalinapestana@gmail.com