A indignação simbélica

Infelizmente estava fora da capital no dia das manifestações dos ‘indignados’. Gostaria muito de ter estado entre os alegados 100 mil que, em Lisboa, num momento decerto emocionante, galgaram as escadarias do Parlamento.

sobretudo, desejaria perceber se o arremesso de um ovo era motivo suficiente para tanta polémica relativa à actuação das autoridades – e se o dito cujo estava cozido, mexido, frito, escalfado ou servido a cavalo sobre um lombo (provavelmente de polícia).

no rescaldo desta iniciativa tenho tentado ser árbitro em discussões extremadas: há quem pense que este tipo de indignação, em sentido figurado e até mesmo romântico (de palavras de ordem, cartazes e um ou outro alimento voador), é o caminho a seguir; outros acreditam firmemente que isto só lá vai à grega ou à londrina. tento posicionar-me a meio, ainda sem infelizmente vislumbrar virtude. por um lado, concordo que não é com figurados esqueletos gigantes que vamos assustar quem nos governa, mesmo se estes políticos pouco podem fazer perante as directivas externas e face à herança recebida. por outro, também me parece que falta pêlo na venta aos indignados. mas compreendo-os. é preciso assustar sem destruir. todavia, como fazer isso sem cair no distúrbio selvagem, no motim e na arruaça?

o cinto está a apertar tanto que, receio bem, aproxima-se a hora em que seremos menos indignados simbólicos e mais simbélicos. talvez nos valham os afamados bons costumes. ou não.

ii – um virtual incesto

a seguinte cena peculiar passou-se num bar açoriano e teve como testemunhas o escriba e um pequeno grupo de amigos embasbacados com a perversa ambiguidade da situação.

o pequeno recinto estava cheio de jovens e algazarra. no meio desta destacava-se uma presença insólita: mulher de meia idade, muito produzida, ainda escultural, acompanhada apenas da sua bebida e languidamente encostada ao balcão como se pertencesse ali desde o pecado original.

noutra mesa, bem perto da nossa, 4 adolescentes entreolhavam-se e teciam comentários inaudíveis. um quinto parecia absorto do mundo, concentrado apenas na milf que destoava da fauna habitual. a mulher, entretanto, parecia operar como uma torre de controlo, rodando a cabeça qual radar minucioso a prescrutar a noite.

subitamente, os seus olhares encontraram-se. o puto solitário e a mulher + copo. os colegas do primeiro desatam-se em risinhos nervosos e nós, incautas testemunhas, perguntamo-nos se estaremos de facto a assistir àquilo que pensamos estar a ver. assim parece. um clima de flirt instala-se entre os protagonistas desta dança silenciosa num bar a meio do atlântico até que, por um acaso cósmico, sucede um daqueles silêncios universais que só duram dois segundos e, após uma aparente pergunta de um dos amigos, escutamos a resposta do adolescente, sempre neutro, inexpressivo, com ar de pai de si mesmo, mirando nestes preparos a supracitada mulher: ‘sim… é a minha mãe’.

iii – registo do direito de autor

sobre hipotético anúncio

a acumulação de demasiadas noites seguidas a dormir poucas horas tem levado o escriba a sonhos mais ou menos delirantes. regra geral, acordo de rompante e só consigo recordar uns míseros e incompreensíveis flashes, como se o cérebro só funcionasse ao ritmo do piscar de uma strobe-light típica de discoteca. vão saindo umas polaroids confusas até que o duche ou o pequeno-almoço redimem os neurónios e conduzem-nos, serena mas militarmente, para a luz do dia.

mas ontem sonhei como se escrevesse um guião, com diálogos na coluna da direita, acções na da esquerda, princípio, meio e fim. imaginei um eventual anúncio publicitário – reza assim: começamos com uma panorâmica de ruas infestadas, trânsito matinal intenso; e chegamos em travelling ao nosso protagonista, bufando dentro do carro com o pára-arranca. pensa na vida, não gosta do que vê, tamborila com os dedos no volante. o som é uma cacofonia de motores e buzinas. plano de corte de um semáforo a ficar vermelho mesmo quando o nosso homem a ele chega. mais um esgar de insatisfação, mais demora, mais fumo dos tubos de escape, confusão e stress. enfim, o sinal passa a verde. mas quando o protagonista, com a aparência de um leve sorriso, mete a primeira e arranca, logo apanha um susto de morte com outro veículo que se atravessa à sua frente no cruzamento. pneus a chiar, travagem brusca, impropérios. o outro condutor, que passou sem dever, não reconhece a culpa e ainda insulta o nosso homem que, indignado, baixa o vidro de chofre e estende o braço de fora para dirigir ao energúmeno aquele gesto universal de ofensa que toda a gente conhece e consiste num punho fechado à excepção do dedo do meio. contudo… e por muito que se esforce, o pai-de-todos tremelica e não se levanta. fica a mão numa espécie de rosa pálida e murcha, patética. o nosso homem cabisbaixo.

vai a negro e surge a informação: ‘a disfunção eréctil atinge um em cada 10 portugueses. não faça parte do milhão. antes que seja tarde, procure a solução’.

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