O cancro e o tribunal

A informação sobre a saga que a família de Safira foi obrigada a viver no último ano já foi dada, aparentemente com objectividade, pela Visão e por um canal generalista de televisão.

safira é uma menina a quem foi diagnosticado um tumor de wilms num rim, aos 5 anos de idade.

segundo as orientações clínicas do ipo de lisboa (o melhor hospital que conheço), a menina, depois de 4 sessões de quimioterapia, deveria ser operada para remoção do tumor – e depois fazer uma longa série de 27 tratamentos de pós-operatório, com outro cocktail de químicos.

a família, pelo que tinha observado na primeira série de quimioterapia, entendeu que safira não iria aguentar tantas sessões de tratamento. assim, procurou alternativas – e encontrou-as.

encontrar alternativas parece ser, para os nossos melhores clínicos em oncologia, uma ofensa de lesa competência.

encontrar doentes que pensem – ou pais que pensem pelos seus filhos muito pequenos – desperta na maior parte desses clínicos o que há de pior em todos os humanos: a crença de que, sendo deuses, são também os donos da vida e da morte de cada um de nós.

o conhecimento democratizou-se, a globalização também trouxe coisas boas, e hoje já muitos cidadãos podem falar com especialistas das ciências da saúde (ou das ciências das doenças) sem a percepção de estarem a comunicar em línguas imperceptíveis para cada uma das partes.

os pais não são donos da vida dos filhos, mas os médicos também não são e os tribunais muito menos.

ouvi na televisão o juiz conselheiro armando leandro tentar explicar que «ninguém agiu com má intenção». desliguei. o amor que me liga a ele há mais de 30 anos de trabalho em comum dá-me o direito de, quando o oiço a tomar posições de excessiva contemporização, recordar o muito que me ensinou: «a justiça só deve ser chamada a actuar quando a educação não cumpre a sua função».

a educação cívica e crítica daqueles pais não precisava do tribunal para coisa nenhuma.

quando, talvez pela primeira vez, aquela meritíssima juíza despachou em tempo útil uma medida de promoção e protecção, fê-lo sem ter ouvido as partes, fazendo fé apenas na parte com poder institucional: o ipo de lisboa, através da comissão de protecção de crianças e jovens.

‘com o devido respeito’, como tanto gostam de dizer os magistrados judiciais, o que a senhora decretou para a vida da safira teria sido, caso os pais não lhe tivessem trocado as voltas, um pesadelo semelhante ao tumor wilms.

por recusarem um tipo de tratamento e preferirem outro (usado, diga-se, em países civilizados), os pais da safira podiam, segundo o tribunal, perder a guarda da filha – que seria temporariamente entregue ao hospital, que um tribunal prepotente decretou omnipotente e omnisciente para decidir qual o superior interesse da criança.

aos pais ninguém quis ouvir, na presunção de que são todos acéfalos e acríticos.

gostava de ver tanta diligência e rapidez nas centenas de situações de crianças vítimas de maus tratos parentais.

esta história é o exemplo típico da doença endémica de que a comunicação entre os humanos padece nos nossos dias.

ninguém pára para escutar o outro – nem põe a hipótese de, porventura, poder estar errado.

não conheço a família envolvida, conheço por experiência própria o ipo de lisboa, que reconheço como um hospital com uma cultura cuidadora. e conheço a prática de muitos tribunais de menores em situações de risco para as crianças objecto da sua intervenção.

querendo tomar partido pela causa dos mais fracos (crianças doentes) ofereço-me como voluntária para ajudar a criar a fundação que o tio fernando deseja ter – para poder ajudar outras famílias em igualdade de circunstâncias.

por favor! se não conseguiram a humildade necessária a montante do problema, poupem-nos à vulgaridade de ouvirmos qualquer das partes dizer ‘eu é que tinha razão’.

catalinapestana@gmail.com