Eles, elas e os filhos

A mulher bateu à porta, ansiosa e esbaforida.Teria aproximadamente cinquenta anos, que talvez já tivessem sido vistosos.

carregava uma história igual à de muitas outras mulheres e à de alguns homens.

afectos em mutação, casamentos desfeitos, tutela dos filhos, visitas, pensões de alimentos.

grande número de mulheres como esta, esgotada a capacidade de ser infeliz todos os dias em nome dos filhos, quebra os votos e negoceia civilizadamente o exercício do poder parental.

quando se chega a este estado, qualquer das partes é capaz de fazer coisas que, mais tarde, terá ‘pudor de contar seja a quem for’.

as crianças, na sua qualidade de filhos, são joguetes de raivas e frustrações exercidas em nome do seu ‘superior interesse’.

tradicionalmente espera-se das mulheres mais bom senso na gestão destes conflitos. e a investigação científica confirma esta premissa cultural.

quando não existe esse bom senso, a perversidade atinge requintes.

seria bom, aliás, que a evolução que exigimos em questões de género englobasse cada vez mais a igualdade de direitos e deveres do casal separado, no que diz respeito aos filhos de ambos.

há muitas mulheres como a de ontem à noite que, já divorciadas, continuam a habitar com o ex-marido na casa que é delas (por herança pós-divórcio). e fazem-no por medo.

«ele diz que não sai, e que se eu mudar as fechaduras me atropela na rua e me mata. ele é advogado e sabe que ninguém é condenado por matar em acidentes de viação. eu tenho medo».

medo, muitas vezes físico, é a palavra que mais se ouve quando as vítimas são mulheres.

e quando são homens?

na maioria destes casos, a subtileza é muito maior. as leis, a cultura ancestral fazem dos pais zangãos cujo papel se limita à fecundação e, posteriormente, a trazer para casa dinheiro para a subsistência da família.

mas há histórias muito diferentes destas.

numa caminhada cujo fim ainda está distante, há já homens que ganharam com a emancipação das mulheres: ganharam o direito de ser pais por inteiro.

trabalham fora de casa como a maioria das mulheres, e partilham com elas as tarefas da casa e do cuidar dos filhos. e fazem-no com uma competência igual à das suas companheiras.

há também mulheres que não lhes perdoam isso.

essas não batem à porta das redes de cuidadores, afogueadas, amedrontadas, tarde na noite.

essas permitem que os seus filhos só possam ver os pais duas horas por semana no gabinete de uma assistente social desconhecida de ambos.

essas dizem aos filhos pequenos, à noite, na intimidade da estória contada antes de dormir, que o pai já não gosta deles – e que o avô ou o tio vão ser, a partir dali, o pai que eles não têm.

essas são aparentemente mães exemplares, que têm a cumplicidade de nós todos e dos tribunais.

essas são mesmo capazes de ensinar catequese numa qualquer igreja onde se interprete mal o conceito bíblico ‘que a tua mão esquerda não saiba o que a direita faz’.

o caminhoé ainda longo – longo demais para que possamos gastar energias digladiando-nos.

o caminho é ainda longo demais para que possamos atingir – homens e mulheres, pais e mães, juízes, psicólogos e toda parafernália de cuidadores – o superior interesse da criança.

juntos caminhamos lentamente. guerreando, voltaremos para trás – quando as pedras lançadas por cada uma das partes começarem a atingir as cabeças mais confusas.

catalinapestana@gmail.com