Antologia dos comunicados eruditos

É opinião, creio, da esmagadora maioria, que os futebolistas não primam pela inteligência. Julgo contudo tratar-se de um equívoco.

um número considerável de craques são, pelo menos, bilingues. não propriamente no sentido – correcto – de serem capazes de falar dois idiomas, mas mais no sentido, vá, lato, de falar português grunho e português literato (doravante designados pelas siglas pg e pl). às vezes fazem recordar um antigo presidente da república que se expressava melhor em inglês do que na língua-mãe.

passo a explicar: quem vê tantos jogadores digladiar-se com o português – é certo que ser obrigado a dizer sempre a mesma coisa também não ajudará (ou será que deveria ser ao contrário?) – com o mesmo tipo aparente de esforço que um indivíduo empregaria na luta para escapar a um tubarão, não consegue deixar de ficar surpreendido com a leitura dos comunicados que lhes são atribuídos.

ainda recentemente, com as polémicas na selecção nacional em redor de ricardo carvalho e josé bosingwa, tivemos exemplos paradigmáticos do que aqui defendo. qualquer um deles não ficou, por exemplo, ‘irritado p’ra caraças’ com o que sobre si foi dito ou feito – antes, como se pôde testemunhar através dos respectivos comunicados, mostrou-se «indignado».

não reagiram a quente com meia dúzia de impropérios típicos dos praticados no relvado – antes (e mui diplomaticamente) rejeitam «as insinuações» de quem consideram tê-los atacado.

e, decerto feridos no ego e no orgulho, não terminaram com o forte desejo naturalmente instintivo de que o seleccionador se fosse providenciar de sexo bruto na forma passiva com um qualquer primata de grande envergadura – antes declararam, ambos e solenes, que «as declarações proferidas sobre a minha pessoa são falsas e põem em causa a minha integridade profissional e ética», concluindo, aliás com uma elegância de lorde britânico prestes a desafiar o oponente para um duelo com armas a designar por este: «exijo ao meu interlocutor que se retracte».

uma perfeita fineza, um tão doce trato no pl, que – graças aos referidos comunicados – logo deitamos o pg para trás das costas. sugere mesmo o humilde escriba que uma qualquer editora bem-intencionada se chegue à frente para publicar uma colectânea destes raros exemplares de prosa arrasadora dos velhos preconceitos. e, já agora, que outras figuras da bola sigam o exemplo desta verdadeira geração de novos autores e passem a comunicar por escrito. pode ser, octávio machado, jaime pacheco, vítor pereira, jorge jesus, antónio salvador, etc., etc.?

ii – um consumado cretino

com os meus amigos e colegas serafim, bruno ferreira e antónio raminhos fui a beja no âmbito de um espectáculo de solidariedade. cerca de 300 pessoas enchem uma sala para jantar seguido de actuação – uma combinação pelo preço de 25 euros que revertem integralmente para a construção do lar residencial do centro de paralisia cerebral de beja. os artistas, obviamente, não cobram cachet e algumas figuras da cidade encontram-se presentes. figuras e figurinhas, como o leitor verá de seguida.

desembolsar 25 euros nestes tempos, mesmo com fim solidário, não está ao alcance da carteira (nem da disposição) de qualquer um. há portanto um sentimento generalizado de agradecimento. precisamente nos brevíssimos discursos com síntese na palavra ‘obrigado’, alguns membros da direcção do centro agradecem a meia dúzia de pessoas devidamente nomeadas. falou-se um pouco antes de começar a jantar e mais um bocadinho após, como interregno para os comediantes. é nesta altura que a figurinha se revela.

pensei sinceramente em chamar o boi pelo nome, mas concluí que não vale a pena. o fulano em questão é deputado por beja, eleito apenas porque o n.º 1 do círculo foi chamado para o núcleo duro do actual primeiro-ministro. ou seja, o indivíduo em questão corre o risco de nem sequer ser conhecido na sua própria terra mas aspira, claramente, a ser mais do que somente famoso na rua dele. assim chegado, por portas mais ou menos travessas, ao parlamento, quase aposto que será um desses deputados que pouco mais farão do que sentar e levantar o real – perdão, o republicano – traseiro do seu assento no hemiciclo. logo, se é dado como certo e sabido que a figurinha não se fará (re)conhecer durante esta legislatura, para quê dar-lhe agora o luxo de um nome?

fez o quê afinal, este patético exemplar da nossa classe política? furibundo por não ter escutado, lá está, o seu nome no curtíssimo rol de agradecimentos devidos pelo certame caritativo (e desconheço até à data que papel minimamente relevante terá ele tido no mesmo, além de – eventualmente – ter pago 25 euros como os outros convivas), vociferou para quem o quis ouvir que, «se soubesse que isto ia acontecer, nem sequer teria vindo!».

portanto, o espécime cujo nome faço questão de omitir ficou fulo por ninguém se ter lembrado de o nomear. tome lá esta justa ironia poética, e embrulhe-a. feliz natal.

lfb_77@hotmail.com