Menos luzes, mais Natal

A minha rua, que é a continuação da minha casa, só tem neste Natal um tronco de árvore iluminado.

não sei qual dos meus vizinhos o iluminou, sei apenas que, sem o barulho de muitas luzes, a rua permite uma nitidez de imagens muito maior.

há menos pais natais transformados em alpinistas nos blocos de apartamentos de três andares que dão forma à nossa rua. parece que o nosso ‘chinês’ este ano não vende – e portanto as pessoas aproveitaram para não comprar, com a desculpa de não virem carregadas para casa. mas todos sabemos que tem que ver com a crise.

as folhas das árvores que quase todos vimos plantar atapetam a rua em camadas sobrepostas durante os fins-de-semana. não fosse a falta de agilidade das nossas articulações, e quase poderíamos escorregar nelas como se de neve se tratasse.

nesta rua, quase sem iluminação natalícia, as pessoas parecem neste ano mais atentas aos segredos, bons e maus, que se desenvolvem dentro das casas – teias de alvéolos pulmonares nos quais as vidas se desenrolam.

parecemos menos encandeados pelas luzes e pelos papéis prateados ou azul metálico.

alguns olham para os outros com olhos de ver dentro, intelegir.

embora tenhamos bem viva a consciência das injustiças às quais estamos sujeitos, com quase total ausência de responsabilidade nas suas causas, o facto parece ter-nos aproximado mais uns dos outros.

no último domingo, na sala cheia do centro social da paróquia, estavam pessoas que habitualmente não fazem actividades grupais.

percebemos, devagarinho, que é localmente que sobreviveremos.

que é das redes de proximidade que irão saindo as soluções, não para os problemas da europa nem do país, nem dos mercados, nem das dívidas soberanas, mas das pessoas.

pessoas com nome, rosto e histórias que se cruzarão com as de outras, que vivem no mesmo círculo de vizinhança.

a solange tem 19 anos que parecem 15, um bebé lindo ao seu lado num carrinho, pastilha elástica na boca. o pai da criança morreu, ainda não sabemos bem de quê.

o presidente da junta de freguesia diz baixinho a dois ou três fregueses:

– temos de ajudar a crescer a mãe e o filho!

nesta rede, a solange é uma ‘pessoa’ e não uma ‘utente’.

a dra. arménia vivia num lar privado das redondezas. tem 92 anos completamente lúcidos, uma reforma decente para a média nacional e uma família numerosa. levaram-na para outro lar, mais barato, porque não aguentaram o esforço económico.

situações semelhantes serão comuns nos próximos anos.

a dra. arménia tinha amigas no lar onde vivia, e que se propuseram visitá-la no novo domicílio. mas foram informadas que, por ordem do sobrinho que promoveu o seu internamento, não podia receber visitas do lar onde habitava anteriormente. será isto permitido?

não sei se é ou não constitucional. mas os amigos da dra. arménia sabem que aquele rapaz precisa ser ajudado a crescer, do pescoço para cima, porque o resto do corpo cresceu demais.

precisa que alguém lhe diga que a tia, que o criou, tem direitos cívicos.

que o direito a ter amigos é inalienável.

a solange e a dra. arménia têm a sorte de pertencer a esta aldeia urbana que é a cruz quebrada-dafundo, promovida a vila.

ora não é exactamente esta teia de proximidade, de contacto humano, de exercício do poder responsável e responsabilizado que a senhora dona troika e o senhor governo querem reduzir?

a forma como os autarcas da associação nacional de freguesias receberam o ministro no último sábado foi já um sinal.

quem tiver ouvidos para ouvir que oiça, quem tiver olhos para ver que veja!

este ano, não vão poder desculpar-se com o barulho das luzes.

catalinapestana@gmail.com