Os traumas também prescrevem

O facto do crime de homicídio prescrever em Portugal é daquelas situações horrendas que fazem a voz peixeira cá do íntimo querer exclamar de imediato: ‘Oh pá, só neste país!’.

essa voz tem razão. lembro-me de ouvi-la sussurrar quando me sentava nos bancos da faculdade de direito de lisboa, sobre este assunto e outros. a usucapião intrigava-me. então fulano fica 20 anos na posse de algo que não lhe pertence e a lei atribui-lhe só por isso o direito de propriedade? como indivíduo distraído que sempre fui, tomei providências. quase não tenho bens e ando frequentemente com a casa às costas. não vá o diabo tecê-las. fujo dos okupas como um vampiro da cruz. e ainda choro, regularmente, os cds, livros e dvds emprestadados.

todavia, revista e aumentada, há que deduzir ser esta – a falta de memória, a redenção por via burocrática – uma triste característica de portugal. basta ver como (não) lidamos com os nossos próprios traumas. um acontecimento a roçar o miraculoso como o da salvação dos pescadores caxineiros do virgem do sameiro, neste momento, e fosse a nacionalidade deles outra, já estaria a ser negociado para diversos tipos de media. isaltino estaria preso. sócrates jamais voltaria ao activo na política.

somos assim. um país de costas voltadas para o mar mas com memória de peixe. perdoamos tudo, pior, esquecemos tudo (teoria da não-inscrição, josé gil). e até os traumas colectivos, nacionais, deixamos prescrever antes de os tratarmos artisticamente.

há quanto tempo foi a tragédia de entre-os-rios? quanta ficção existe sobre ela? que peças de teatro foram escritas sobre a repercussão da morte de sá carneiro em plena democracia gatinhante? e a guerra colonial? enquanto, nos eua, devem contar-se por milhares os filmes, séries, peças, livros e etc. sobre o vietname, por cá praticamente só em tempos recentes começámos a falar sobre o assunto no divã (excelente série documental a guerra, de joaquim furtado; ou memórias de ex-combatentes no correio da manhã). e assim vamos andando, cantando – êxitos televisivos com base no karaoke, e rindo – humor de trocadilho, careta e innuendo sexual.

e termino, para resumir, regressando a um tema já abordado nesta página. o arrepio que sinto ao passar na rua antónio maria cardoso e constatar que o antigo edifício da pide é hoje um condomínio de luxo. país sem memória é um país sem vergonha.

ii – crítica preventiva

(ou da comédia como parente pobre)

o meu querido colega e amigo antónio raminhos lançou há dias o seu primeiro livro – o amor não tem hora marcada… excepto nos classificados, 4.ª edição da recém-criada editora cego, surdo e mudo – uma iniciativa corajosa de fernando alvim (abrir um negócio, ainda por cima de índole cultural, e para mais nestes tempos) – que paga, pasme-se, 20% de direitos aos seus autores. uma perfeita raridade. a média está nos 10% e, para quem publica, o negócio editorial português é bastante similar a uma ida ao mecânico: chegamos lá, dizem-nos ‘é isto’, e nós engolimos pois não temos como averiguar a eventualidade de ser outra coisa. exemplo: você vendeu ‘x’ e tem direito a ‘y’. interlocutor: ‘ah, sim?…então pronto’.

mas não é isto que me traz à croniqueta. acontece que um jornal gratuito, na véspera do lançamento, apresentava – na sua página de sugestões culturais – uma breve resenha crítica ao livro do comediante raminhos. óptimo, à primeira vista. num país onde se publicam mais de 50 livros por dia, ter alguma atenção mediática é um afago que muito se deseja. sucede, contudo, que o livro em questão foi despachado com 3 estrelas – de uma a cinco – sendo que era absolutamente impossível ter sido lido pelo autor da peça, uma vez que um atraso na gráfica fez com que os exemplares, quentinhos e bons, só estivessem disponíveis literalmente em cima do acontecimento, no dia da apresentação. the plot thickens. a directora deste jornal é escritora.

até se pode salientar que o meu amigo não tem de se queixar da sorte. 3 estrelas é porreirinho, como nos hotéis. 4 paredes e um tecto, pronto… não tem spa nem piscina mas ao menos não há baratas debaixo da cama. mas a ligeireza irrita. e, mais do que esta, o preconceito. consigo acompanhar o raciocínio do responsável pela prosa: ‘ah, é humor… leva 3 estrelinhas e depois não diga que vai daqui’. continuando nas analogias hoteleiras, a comédia está para a literatura como um íbis para um resort.

já agora, o livro de antónio raminhos tem um prefácio quiçá inédito e à laia de cadáver esquisito – escrito a 4 mãos: fernando alvim, pedro fernandes, este vosso amigo e herman josé. na mesma página do gratuito dirigido pela escritora, atribuem-se 4 generosas estrelas a um calhamaço (terá sido lido?) com prefácio de jaime gama. segundo a teoria da proporcionalidade, concluo que para equivaler a um parágrafo do ex-presidente da assembleia da república terei de escrever qualquer coisa como um romance histórico. e concluir isto é uma coisa que chateia, pá.

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