Dar a volta nisto

A BIÁ fazia sopa de grão com beldroegas. Cheirava deliciosamente – e, não fossem as recomendações da filha para que não lhe deitasse um pouco de tudo o que havia no frigorífico, aquela seria uma sopa/prato principal como se comia no Alentejo pobre dos anos 40.

quem não tinha nada ia ao rabisco do grão que grandes ranchos de mulheres deixavam cair durante a apanha, nas madrugadas de verão, ainda com pouca luz.

seco, era conservado em taleigos de pano, para os gélidos invernos, quando o trabalho escasseava e os homens iam à praça dias seguidos sem arranjar patrão. as mulheres, para as quais também não havia trabalho, tinham de inventar comida para acalmar a fome de um rancho de filhos.

conheciam todas as ervas do campo que podiam comer-se: cardos, acelgas, alabaças, espargos verdes e agriões, nas bordas dos ribeiros.

jantar de grão tinha tudo lá dentro – e era no fim regado com um fio de azeite.

mas, para os ricos, aquela era uma sopa que precederia outro prato à base de proteínas animais.

a biá já ouve mal, nos seus quase 90 anos muito vividos, mas ouvira na noite anterior um casal jovem, saudável e com trabalho, em plena idade reprodutiva, dizer que não tinha filhos porque, com esta crise, não lhes poderia dar tudo o que precisavam.

a biá riu baixinho. engravidara pela primeira vez por alturas da segunda guerra mundial e tinha muita fome de pão. na sua terra, quase sempre madrasta má para a maioria dos que nela nasciam, as sopas tinham meia dúzia de ervas e pão fatiado. o pão era a base da alimentação.

na sua gravidez, desejava pão como hoje se desejam cerejas em dezembro.

o marido, operário, arranjou um gancho numa padaria, para ter mais um quarto de pão do que a senha de racionamento permitia.

era a sua forma de alimentar o primeiro filho (que saiu filha e era feia de meter susto, depois de um parto que durou três dias). e tiveram outro, que morreu, e depois mais outra.

ninguém quer para as crianças de hoje a infância que teve a biá e os seus seis irmãos.

a obsessão pelo mundo do ‘ter’ – não oferecendo às crianças um irmão para lhes poder dar um infantário de marca, várias cadeirinhas de marca conforme os meses de idade, roupinhas de marca que um mês depois já não lhes servirão (e que a opção pelo filho único nem sequer permitirá que passe para os irmãos mais novos – não parece ser coisa sensata aos muitos anos vividos pela biá.

a crise não é só económico-financeira: é também, ou sobretudo, de estilos de vida, de valores e de generosidade.

se nos anos 40, em portugal, os pobres tinham filhos porque eram o seu magro património – pois trabalhavam desde crianças, em casa, a cuidar dos mais novos, ou à jorna, ao lado das mães –, hoje quase só os imigrantes têm mais de dois filhos. e são estes que têm as mais duras condições de vida dos que ainda têm trabalho neste país…

a continuarmos assim, ou damos a volta a isto ou não vamos ter quem nos enterre – muito menos quem colabore para a continuidade de uma segurança social sustentável.

tenho a sensação de que estamos a regredir em termos civilizacionais, a pretexto das mais variadas crises.

o próximo ano ameaça ser muito mau.

as ameaças a esse respeito lembram uma nova forma de guerra fria, desta vez entre protagonistas do mesmo tecido social. guerra fria entre o capital e o trabalho.

o próximo ano, do meu ponto de vista, será o que cada cidadão, e todos os cidadãos organizados, fizerem dele. é preciso arregaçar as mangas e não delegar a qualidade das nossas vidas em políticos de competência e seriedade duvidosas.

as políticas de proximidade são, no actual contexto, as únicas que permitem um escrutínio atempado e uma participação de todos não simbólica.

desejos de um ano que saibamos todos ajudar a construir.

catalinapestana@gmail.com