Cair do céu aos trambolhões

Há dois anos escrevi nesta coluna uma crónica sobre um terrível desastre de comboio em Espanha, em Santiago de Compostela, em que morreram 80 pessoas. Num vídeo gravado pelas câmaras da empresa, via-se o comboio entrar numa curva a uma velocidade medonha, seguia-se o descarrilamento de algumas carruagens, finalmente as últimas entravam numa agitação louca,…

Na altura atribuiu-se o acidente a distracção do maquinista – que estaria a falar ao telemóvel. E a pergunta que imediatamente ocorria era: como perceber que uma actividade tão exigente como a condução de um comboio de alta velocidade pudesse estar entregue a uma única pessoa? Por que não havia um ajudante? Não só para prevenir eventuais distracções mas porque o maquinista poderia ter um desfalecimento, uma síncope cardíaca.

E dava-se o exemplo do avião, que tem obrigatoriamente um piloto e um co-piloto.

Depois do que aconteceu na semana passada nos Alpes franceses, ficámos a saber que um piloto e um co-piloto não chegam. Porque um deles pode ter de sair do cockpit, para ir à casa de banho ou fazer outra coisa qualquer, e um monstro daqueles suspenso no ar não pode ficar entregue a um indivíduo.

Devo dizer que durante anos tive verdadeiro pânico de andar de avião – e fiz várias viagens longas de carro (a Paris, a Londres e a Roma) só para evitar o transporte aéreo. Antes disso, apanhei alguns sustos. Numa viagem a Londres, quando regressávamos a Lisboa, o avião começou a descer, a descer, a descer, algumas pessoas puseram-se a rezar, outras a gritar, outras ainda a vomitar – e a descida parecia não ter fim. O avião caiu em vários poços de ar e a certa altura foi atingido por um raio. Mas mantive-me sempre calmo. Lembro-me de dizer à minha mulher: «Os acidentes aéreos acontecem ao levantar e ao aterrar. Não há notícia de um avião cair do céu aos trambolhões». E nessa época isto era rigorosamente verdade. Se fosse hoje, eu já não teria reagido do mesmo modo…

Como disse, estive anos sem viajar de avião – até ser obrigado pelas circunstâncias a voltar a fazê-lo. Num mundo globalizado, o avião acaba sempre por se impor aos nossos medos. Mas a minha ideia de que os acidentes só aconteciam na descolagem e na aterragem mantinha-se intacta. Até que…

Até que, em 2009, um avião da Air France que vinha do Brasil para Paris se despenhou no Oceano Atlântico. Segundo foi dito, o aparelho caiu mesmo do céu aos trambolhões. Primeiro, houve uma informação errada transmitida pelos sensores de altitude ao computador de bordo, depois deu-se uma sucessão de erros humanos graves.

E depois disso já caíram do céu outros aviões. Na Ucrânia despenhou-se um aparelho da Malaysia Airlines; na fronteira de Angola com o Botsuana caiu um avião das Linhas Aéreas de Moçambique; no Pacífico desapareceu um Boeing também da Malásia. 

Ora, estando ainda por apurar nalguns destes casos as causas da queda, uma coisa é certa: os aviões não têm acidentes só ao descolar e ao aterrar – também caem em pleno voo. E esta constatação é terrível. 

Até aos anos 60, os desastres aéreos tinham invariavelmente uma de três origens: avarias mecânicas, alteração brusca das condições meteorológicas ou erro humano. Ora, o erro humano foi sendo eliminado, pois até a maior parte das aterragens já é automatizada, conduzida pela torre de controlo; as alterações meteorológicas também já podem ser antecipadas com grande antecedência; e as avarias são cada vez menos frequentes, mercê de um maior aperfeiçoamento das máquinas.

Só que, entretanto, entraram em cena novos actores. 

Nos ditos anos 60 surgiram os piratas do ar – que desviavam aviões da sua rota, tomavam os passageiros como reféns e faziam exigências políticas. Este fenómeno reduziu-se drasticamente com o aumento da segurança nos aeroportos, mas no limiar do século XXI apareceu outra forma de terrorismo aéreo: o uso dos aviões como bombas. Em boa verdade, não se podia falar de uma técnica nova, pois já era usada pelos kamikazes. Mas o 11 de Setembro foi a primeira vez em que isso aconteceu fora de um cenário de guerra. Cheios de combustível, os aviões têm um potencial de destruição gigantesco, fazendo cair edifícios enormes como as Torres Gémeas.

Esta nova forma de terrorismo teve grandes consequências, designadamente em matéria de segurança nos aeroportos e nos procedimentos das tripulações – mas não afectou muito a confiança dos utilizadores do transporte aéreo, pois percebia-se que seriam sempre situações excepcionais, sem o risco de se vulgarizarem.

Com o avião da Germanwings, porém, o caso muda de figura. O facto de um piloto se suicidar pode dar origem a fenómenos de imitação. Até porque há nestes episódios uma dimensão 'espectacular' que pode ser muito atractiva para mentes doentias. Tal como os incendiários, que vibram ao ver os seus actos criminosos noticiados nas televisões, um piloto pode sonhar ganhar a celebridade a título póstumo com um acto desesperado deste tipo. O mal é começar. 

Recordo que em 2013 uma situação idêntica ocorreu com o avião moçambicano atrás referido. Mas na altura não se ligou muito ao caso – visto que aconteceu nos confins de África, muito longe de nós. Desta vez, porém, sucedeu mesmo à nossa porta.

O problema, agora, é saber como será possível evitar loucuras destas. Parece-me difícil. Mesmo estando dois pilotos no cockpit, um pode neutralizar o outro e depois fazer cair o avião. E ainda que a tripulação possa aceder ao cockpit, se o piloto kamikaze  for aos comandos e o outro estiver neutralizado, o que poderão os tripulantes fazer? Assumir o controlo do aparelho não sabendo pilotar? Se houver determinação por parte do suicida, não vejo como evitar estas tragédias. Note-se que a coacção joga com o medo da morte: aponta-se uma arma a um fulano para o intimar a fazer (ou não fazer) determinada coisa. Mas se a pessoa que se quer dominar não tiver medo de morrer, como obrigá-la a fazer isto ou aquilo?

O acidente da Germanwings introduziu uma nova dimensão na história da aviação ocidental. Depois dos piratas aéreos, depois dos terroristas que usam o avião como bomba, há os pilotos suicidas. 

Os especialistas de segurança aérea têm muito em que pensar, até porque já se viu que às vezes, ao querer resolver-se um problema, se cria outro. Ao limitar-se o acesso ao cockpit, depois do 11 de Setembro, abriu-se a possibilidade de um piloto louco se trancar lá dentro e ninguém conseguir abrir a porta. 

O ideal seria os aviões serem conduzidos por robôs que tivessem comportamentos previsíveis. Mas isso é impossível, porque em certas situações de emergência é mesmo necessário estar aos comandos um ser humano para resolver um problema inesperado.

Não sei como sair daqui. Só sei que agora temos razões para ir preocupados durante todo o voo. Antes, suspendíamos a respiração na descolagem, quando aquela aventesma se erguia no ar e começávamos a ver as casas mais pequenas lá em baixo, mas quando o avião ganhava altura e entrava em velocidade de cruzeiro recostávamo-nos para trás e descontraíamos. E só voltávamos a dar atenção às operações de voo na altura da aterragem.

A partir de agora, temos de estar sempre alerta. Embora isso não sirva para nada. 

jas@sol.pt