Krise D’identidade

Venho de uma aldeia alentejana que, como tantas outras, triplica a sua população no mês de Agosto, especialmente por alturas daquelas festas de Verão que já toda a alta cultura tentou explorar. E que contam com o churrasco, o baile permanente com uma atracção principal de peso do universo pimba, a quermesse que já teve…

Sempre fui às festas, porque gosto genuinamente das festas. 

Muito antes da dica-convite do nosso actual primeiro-ministro, vivi uns anos fora de Portugal. Tinha naturalmente saudades, e arranjei esquemas para as matar, sendo que os dois mais eficazes eram a procura do café onde se vissem jogos do Benfica (o Benfica é uma 'pátria' que aglomera muito melhor e mais transversalmente do que a 'língua portuguesa') e ouvir música popular portuguesa, mais conhecida como pimba. 

Ora, como o futebol tem calendário, às vezes tornava-se muito difícil esperar tanto tempo pela próxima matança. Por isso destaco, sem dúvidas, a música pimba como a melhor forma de matar saudades quando era emigrante. 

Reconfortava-me muitíssimo ouvir o Leonel Nunes, letrista incomparável a quem Quim Barreiros deve tudo, a Ágata, ou o Trio Odemira. E destes exemplos até estar a jogar digamos que no underground, vá no indie do pimba, à música feita cheia de sotaque pelos emigrantes portugueses de segunda geração com carreiras musicais lá fora – falo-vos de Jenn Justina, Shawn Fernandes, Telmo Pereira e até Sandro G. – foi um saltinho. Nunca ouvi música pimba com grande ironia, sempre a ouvi ciente da sua transversalidade efectiva.  
Trata-se a música popular portuguesa com desdém, da mesma forma que se trata a cultura portuguesa, a herança nacional e todos os nossos desígnios com a mesma displicência com que se tratam as piores coisas do mundo. É horrível e sabe muito mal, mas é assim. O português é soberbo.  

Hoje pensei em Portugal. Pensei depois na crise de identidade e logo a seguir no Nel Monteiro. Uma manhã, estava a televisão ligada, quando 'Kuduro é que é Bom', o seu single para 2011, era apresentado num programa de um canal qualquer. A estrofe era tão corrida e o ritmo tão 'bailante' que não consegui acreditar bem na letra, pelo que tive de ir à internet procurar a dita música, para a decorar e acrescentá-la à minha playlist. Não sabia o nome, não sabia nada. Só sabia que era o Nel Monteiro. Graças a alguém, a internet tinha lá tudo listado e oferecia ainda a notícia que o Nel Monteiro, também ele, se tinha bandeado para o lado do kuduro. Pensei no homem que, em 1984, se estreou com o hoje clássico e mui inocente 'Azar na Praia', para em 2011 se mudar radicalmente para o kuduro, abandonando a música popular portuguesa como a conhecíamos até aí pejada de concertinas. O mais resistente de todos, aquele que uns anos antes lançara um álbum todo ele dedicado à desgraça da diáspora nacional, claramente decepcionado com a sua nação, perdera as forças para continuar a lutar e defender as concertinas e abraçara o kuduro.

Calçando sapatos confortáveis, estilo sapataria Guimarães em tons castanho, trajando calça de ganga com lavagem ácida, de corte baggy só que ajustada ao corpo e com bainhas feitas, e uma t-shirt encarnada com correntes e fios estampados género bling do hip hop, Nel Monteiro apresentava-se nesse programa da manhã com um kuduro bem ritmado e uns movimentos de dança típicos de outros ritmos, que poderiam deixá-lo muito mal não fosse a genialidade sintética da primeira quadra com que abre o tema e retrata o Portugal de então, que é, no fundo, o mesmo que o de hoje: 

"(…) Por não haver dinheiro p'rá festa | Na minha Aldeia a festa não se fez. | Só houve baile com uma morena, | Que pôs a tocar alguns CD. (…)".

Foi numa manhã de 2011 que ouvi, pela segunda vez na minha vida, um poema com a qualidade sintética do 'D. Dinis' de Pessoa. E foi por causa dessa manhã, deste pensamento e das notícias que dão conta do caos ético e estético em que Portugal está mergulhado neste princípio de Abril tão soalheiro e cheio de feriados e tolerâncias de ponto aí à porta, que escrevi isto hoje. 

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