‘Há anos que tento convencer os EUA de que não sou milho’

Mohamedou Ould Slahi, há 13 anos em Guantanamo sem acusação nem julgamento, usa um conto mauritano para ilustrar a sua longa história de prisão e tortura: “Há anos que tento convencer os EUA de que não sou milho”. 

O mauritano, 44 anos, escreveu na sua cela um relato detalhado da sua transferência, "a mando dos Estados Unidos", do Senegal para a Mauritânia, depois para a Jordânia, o Afeganistão e, num dos voos ilegais operados pela CIA, Guantanamo, onde permanece, com mais 121 homens, seis anos depois de Barack Obama ter anunciado o encerramento do campo.

O "Diário de Guantanamo" é um manuscrito de 466 páginas, com mais de 2.600 passagens censuradas, o primeiro testemunho escrito directo de um detido daquela prisão, publicado em Portugal a 30 de Março pela Editora Vogais, do Grupo 20I20.

"Uma história popular da Mauritânia fala-nos de um homem com medo de galos que ficava quase louco sempre que se cruzava com um. 'Porque tens tanto medo do galo?', perguntou-lhe o psiquiatra. 'O galo pensa que eu sou milho.'" 

"'Tu não és milho, és um homem muito grande. Ninguém te conseguiria confundir com uma magra espiga de milho', disse o psiquiatra. 'Eu sei disso, doutor. Mas o galo não". 

"Há anos que tento convencer o governo dos EUA de que não sou milho", escreve Slahi.

Contra ele, os EUA tinham muitas suspeitas e duas provas, que Slahi nunca negou: que em 1991 interrompeu o curso na Alemanha para combater o governo comunista do Afeganistão, ao lado da Al-Qaida, indirectamente apoiada pelos norte-americanos nesse conflito; e que manteve contacto regular com Abu Hafs, um conselheiro de Bin Laden, que é seu primo e cunhado.

"Para mim, cumpres todos os critérios de um terrorista de topo (…) És árabe, és jovem, foste para a 'jihad', falas várias línguas, estiveste em muitos países, és licenciado numa área técnica", conta que lhe disse um dos interrogadores de Guantanamo.

"E isso é crime?", questiona.

Entre 2003 e 2004 é sujeito a um "plano especial de interrogatório", marcado por meses de tortura, espancamentos, isolamento, humilhações, ameaças de morte, ameaças à família, proibição de rezar, privação da luz solar e uma simulação de rapto.

"Vivia literalmente em terror", "a tortura aumentava de dia para dia", "humilhação, assédio sexual, medo e fome eram a ordem do dia", descreve em três de muitas passagens em que relata o tratamento a que foi submetido.

Com o prolongar das torturas, Slahi atinge um ponto de exaustão: "Comecei a alucinar e a ouvir vozes", "percebi que estava prestes a enlouquecer".

Para se manter lúcido, relata, murmurava o Corão e contava "os buracos da jaula em que estava". "São aproximadamente quatro mil", precisa.

Decide então colaborar e confessar o que quer que os interrogadores lhe peçam: "Grande parte das pessoas consegue aceitar o facto de serem aprisionadas injustamente, mas ninguém aguenta uma agonia diária para o resto da vida".

Nessa fase, relata, um interrogador entrega-lhe "um presente", uma almofada. Isolado, sem televisão, rádio, livros ou contacto com outros detidos, Slahi escreve: "Sozinho na minha cela, lia a etiqueta vezes sem conta".

E quando lhe entregam informação sobre o programa de protecção de testemunhas: "Nada disto me ajudaria, mas acabei por pegar nos papéis. Enfim, algo para ler além da etiqueta da almofada".

"Em Guantanamo não controlamos nada: não decidimos o que comemos, quando dormimos, quando nos lavamos, quando acordamos, quando vemos um médico, quando estamos com um interrogador. Não temos privacidade (…). No início é horrível perder todos estes privilégios mas, acredite em mim, as pessoas habituam-se. Eu habituei-me", escreve.

A 03 de Março de 2005, escreve à mão um pedido de libertação: "Olá. Eu, Mohamedou Ould Slahi, detido em GTMO com a referência ISN #760, solicito deste modo a abertura de um pedido de 'habeas corpus'".

A 22 de março de 2010, um juiz do Tribunal Distrital dos Estados Unidos acede ao pedido e ordena a sua libertação. A administração Obama recorre da decisão. O Tribunal de Recurso reenvia o processo para o Distrital para nova audiência, a qual ainda não foi marcada.

No seu relato, escrito a pedido da advogada, Slahi assegura: "Apenas escrevo sobre aquilo que vivi, vi e aprendi em primeira mão. Acredito plenamente que consigo provar todos os pormenores que descrevi neste livro".

Lusa/SOL