Cuba, hora zero

A cimeira das Américas, que hoje se inicia no Panamá, tem como protagonistas os Presidentes Barack Obama e Raúl Castro, e o tema mais relevante da agenda é o restabelecimento das relações diplomáticas entre Washington e Havana, interrompidas há mais de meio século. Será um encontro histórico entre os líderes norte-americano e cubano, apesar de…

Cuba, hora zero

Os sinais recolhidos durante as negociações têm sido positivos mas não suficientes para desbloquear definitivamente uma situação que coloca desafios extremamente complexos a um país muito deprimido, onde o Estado domina todos os sectores e impõe uma tutela asfixiante à vida dos cidadãos, obrigados a mil expedientes de desenrascanço para conseguirem sobreviver com um salário médio correspondente a menos de 20 euros mensais.

A abertura, mesmo condicionada, aos fluxos turísticos e às relações económicas com os EUA terá sempre efeitos imprevisíveis, nomeadamente no plano político interno, onde a sombra de Fidel Castro continua a pairar como um símbolo da resistência à mudança por parte dos sectores mais ortodoxos do regime.

Fidelistas e republicanos americanos mais radicais estariam, pois, concertados em manter o statu quo, embora a continuação do embargo pareça cada vez mais insustentável para a sobrevivência económica de Cuba e se mostre crescentemente impopular nos Estados Unidos, sobretudo entre as novas gerações de cubanos-americanos.

 

Dois partidos?

 

Nos mentideros diplomáticos em Havana corria, há quinze dias, o rumor de que Raúl Castro teria confidenciado à alta representante da UE para a Política Externa Federica Mogherini a existência de dois partidos em Cuba: o dele, Raúl, e o do irmão, Fidel.

Mesmo que se trate de mera especulação ou de um atrevimento irónico do actual Presidente, haverá aí algo de verdadeiro. Aliás, a primeira impressão que se colhe de Cuba é a de um mundo fechado, parado no tempo há largas décadas, mas profundamente dividido entre uma herança revolucionária esgotada – embora defendida com fervor pelos que a inspiraram e vivem à custa da sua lenda – e a aposta no aggiornamento do regime, da qual parece depender a própria subsistência do país.

Cuba vive hoje essencialmente do turismo – sobretudo europeu e canadiano – depois de ter perdido a protecção providencial que lhe ofereciam os seus principais aliados políticos externos: a União Soviética, até à queda do Muro de Berlim, e mais recentemente a Venezuela, mergulhada na crise do pós-chavismo e da erosão dos rendimentos petrolíferos. Mas as velhas cumplicidades tendem a perturbar as futuras regras do jogo entre Cuba e os EUA.

Sintomaticamente, a TV cubana continua a dar amplo destaque às posições venezuelanas na recente disputa diplomática entre Washington e Caracas. Mais sintomático ainda: Fidel Castro, afastado há catorze meses de aparições públicas, surgiu inesperadamente a saudar uma delegação venezuelana, solidarizando-se com as reivindicações do Governo de Nicolás Maduro face a Obama. Mas a notícia só foi divulgada cinco dias depois do acontecimento, ocorrido a 30 de Março.

 

Esquizofrenia

 

Com o fim das utopias voluntaristas da monocultura do açúcar e de outros produtos agrícolas, que marcaram a era inicial do castrismo, Cuba recorreu em desespero de causa a uma fonte de divisas – o turismo – que, pela sua natureza, seria contraditória com o modelo revolucionário original.

O regime tentou ainda evitar o contágio das influências estrangeiras, circunscrevendo a actividade turística a resorts à beira-mar. Mas a força da realidade pesou mais fundo: derradeiro recurso para impedir o colapso económico, o turismo depressa invadiu Havana e outros centros urbanos.

O impacto desse fenómeno alimentou a esquizofrenia da sociedade e do próprio funcionamento do Estado. Exemplo notório disso é a existência de uma moeda dupla: o peso 'conversível' para estrangeiros, o CUC (de valor equivalente ao dólar), e o peso corrente utilizado pela população autóctone, o CUP (um euro vale cerca de vinte e cinco CUPs). É uma confusão que ameaça degenerar em caos total dentro de um modelo de racionalidade económica.

 

O contágio turístico

 

A necessidade de aproveitar até ao limite os rendimentos do turismo foi condicionando o imaginário local: os ícones revolucionários, como Che Guevara, ou os elementos insólitos da paisagem urbana, como os automóveis americanos dos anos 50, são reproduzidos em massa em objectos de consumo para turistas (camisolas, pinturas de estilo naïf e outros artefactos).

O artesanato exibido em feiras havanesas ou em hotéis citadinos e dos resorts está praticamente reduzido a produtos de fancaria turística. É também o que acontece com as bandas musicais que invadem ruas, hotéis e locais emblemáticos mais procurados pelos estrangeiros – nomeadamente a Floridita ou a Bodeguita del Medio, bares frequentados por Hemingway. A autenticidade das manifestações artísticas e musicais vê-se assim contaminada pela sua instrumentalização como meros produtos para consumo turístico. Tornou-se uma questão de sobrevivência.

 

Pobres, iguais e tristes

 

Há quem recorde tempos em que a alegria e a festa eram, apesar das dificuldades, um apanágio do espírito cubano. Hoje, o viajante é surpreendido por uma impressão difusa mas pesada de melancolia, fatalidade e tristeza (ou 'amargura', nome de uma rua do centro histórico de Havana).

Cuba vangloria-se, justamente, dos sucessos registados pela revolução no plano social: uma taxa de alfabetização superior a 90 por cento – cita-se até o número mágico de 99,8 por cento – ou um sistema de saúde sem paralelo em toda a América Latina (e nos próprios Estados Unidos). A criminalidade é também baixa, segundo os padrões americanos, e a presença da polícia nas ruas de Havana não tem comparação com o aparato quase bélico que caracteriza muitas metrópoles regionais. A pobreza é generalizada, mas parece igualitária.

Talvez seja a combinação de todos estes factores que explica a resignação dos havaneses à deterioração acelerada das suas condições de vida e, sobretudo, de habitação. Não há favelas como no Rio, Caracas ou outras metrópoles sul-americanas mas o número de pessoas que se acumulam em escassos metros quadrados de milhares de prédios em ruínas desafia a imaginação – e só é explicável por uma extraordinária capacidade de adaptação à adversidade.

Os havaneses são, além disso, campeões absolutos em reciclagem, com o seu incrível engenho em substituir peças de automóveis antigos ou em recuperar isqueiros e outros objectos destinados à sucata.

 

Havana, a magnífica

 

Havana é uma cidade magnífica, esplendorosa, como talvez nenhuma das suas congéneres latino-americanas – com as prováveis excepções do Rio e Buenos Aires -, mas o reverso desse esplendor está patente na decadência aparentemente irremediável de múltiplas jóias arquitectónicas, desde a era colonial até ao período art déco, que encontramos sobretudo no núcleo mais movimentado da capital, onde se localiza uma réplica majestosa do Capitólio de Washington, actualmente em trabalhos de reconstrução.

​Devido à falta de dinheiro, os esforços de recuperação concentraram-se sobretudo nas áreas do centro histórico mais procuradas pelos turistas, onde velhos hotéis, cafés e bares estão a renascer das cinzas. Ainda aqui, o contraste entre duas cidades, dois mundos, revela-se profundamente perturbante. E sobre isso paira a enorme incerteza desta hora zero com que Cuba se confronta, apesar da esperança motivada pelo fim anunciado do embargo americano. Uma esperança que, para já, não parece suscitar sinais visíveis de euforia entre os cubanos, aparentemente conformados ainda com o seu fado.

 

* em Havana