Teatro: Jovens são os trapos

O primeiro relógio de que se fala em Doce Pássaro da Juventude está desaparecido. Pouco depois surge um que está parado. E parece sempre muito difícil descobrir que horas são ou perceber quanto tempo passou, o que tendo em conta a história de Tennessee Williams em cena no São Luiz pelos Artistas Unidos, não acontece…

«A passagem do tempo, esse impiedoso 'comboio da madrugada', é um dos temas obsessivos de Williams. Talvez até por ter sido mundialmente triunfal o seu início como escritor com Jardim Zoológico de Vidro e Um Eléctrico Chamado Desejo e de terem sido cada vez mais ingratos os anos seguintes», conta Jorge Silva Melo, o encenador. 

O tempo passou para Chance Wayne, um jovem promissor que ainda não cumpriu nenhum dos seus sonhos. Assim como passou para a actriz que se retirou demasiado cedo e tenta esquecer tudo – «Se ao menos eu fosse velha. Mas não era. Só não era nova» – e que volta com ele à sua cidade Natal onde, já é fácil de ver, o tempo também passou para todos. Entre esses todos, uma rapariga em particular: Heavenly.

«Anda por aqui o mito de Orfeu. Ele regressa para salvar a sua Eurídice mas vai perder-se neste inferno em que os deuses são políticos manipuladores, jovens fascistas e os velhos capitalistas do Sul dos EUA». Os problemas com a passagem do tempo vão revelando um passado que não desapareceu, por muito que se fale de esquecimento. Ou, como diz a peça, «nada desaparece assim tão depressa, nem a juventude».

É dia de Páscoa quando a narrativa arranca. «Williams inscreve num realismo por vezes sórdido uma imensa capacidade de poesia e de mito. O rapaz chama-se Chance, a rapariga Heavenly. E nesta Páscoa, ela, vestida de branco, sacrifica-se no palanque do comício fascista enquanto ele avança para um sacrifício crístico». Mais uma camada de simbolismo, como a contagem dos cabelos que caem ou as sombras e luzes que se intercalam no palco.

Elenco repetente
«O que me levou para este texto foi estar a trabalhar com o Rúben Gomes e a Maria João Luís estar disponível. Sim, sou levado pelos actores, gosto de estar com eles, de inventar-lhes personagens e de me perguntar: como é que vão sair deste sarilho? A pouco e pouco, todo o elenco da peça precedente, Gata em Telhado de Zinco Quente, encontrou aqui o seu lugar. É como se tivesse uma companhia…». Até porque a questão da permanência dos Artistas Unidos no Teatro da Politécnica parece prestes a resolver-se «depois de um ano e tal de grandes incertezas».