Estou no centro do mundo

O ciclismo continua pela hora da morte. Admite-se agora, já não bastava o doping, que há uma indústria de motores próprios para bicicletas, coisas do diabo. As vitórias no ciclismo nunca mais serão celebradas sem um aperto. Nada de mais injusto e perigoso – um pouco como a política, os justos pagam pelos pecadores. Nos…

Do que me fui lembrar. Talvez tenha sido sempre assim, de boas intenções está o inferno cheio. Mais do que verdadeiro. Minutos após a morte de Hitler, Goebbels e a mulher mataram os filhos antes de eles próprios se suicidarem – era-lhes insuportável a ideia de viver num mundo sem o Terceiro Reich. Entre a horda de Pol Pot, Estaline e Mao Tse-Tung houve (e ainda há) homens e mulheres sem dúvidas, imparáveis de cegueira e nas tais boas-intenções. Gente que fala em purificação, redenção, crescimento, verdadeira democracia e até liberdade. Quando encontramos estátuas humanas ou fanáticos, o melhor é mudar de conversa ou fugir. Queimam. 

É tão estúpido que assim seja. Se pensassem no assunto, se pensássemos… Se não existe um único ser humano capaz de ver um objecto por inteiro, não há nenhuma razão para ficarmos inquietos por sermos igualmente incapazes de nos vermos na totalidade. Não se desvalorize a equação pois não é apenas geometria descritiva… Recapitulo: somos os que nunca vêem por inteiro e pressentem tudo o resto. Como se fôssemos capazes de ver o que apenas pressentimos. Não há um único motivo para termos certeza em relação ao que apenas vemos pela metade.

Uma questão de humildade. Cada pergunta respondida é a porta de entrada para mais perguntas que não existiam antes, uma roda que nunca pára. Uma roda de grandes e pequenos assuntos. Por exemplo: é o corpo que se habitua ou somos nós quem, por antecipação e hábito, abrimos os olhos uns segundos antes de o despertador tocar? Dizem-me que é o corpo e as suas rotinas, não é para levar a sério – o corpo é força bruta, libido, sensibilidade e dor, está ao nosso comando e se tal não acontece, se somos nós que estamos ao serviço dele, é um tema para amigos de Freud ou para purgantes cilícios. Somos nós… nós antes do corpo, nós na necessidade de nos protegermos, de fazermos os mesmos movimentos e estratagemas. É por isso que abro os olhos um minuto antes do despertador tocar, pela necessidade de não começar o dia a ser controlado por ele. 

Volto à geometria descritiva. Nos sonhos é quase a mesma coisa, no que vemos (ou recordamos) dá ideia de que não existem vários planos, tudo parece absoluto. Dormi mal nos últimos dias, despertei a meio da noite e fiquei sem perceber se estava vivo ou morto. Imagine que ontem acordei na ideia de que saíra à rua de chinelos e roupão. Percebi a estranheza. Olhavam-me como se fosse uma bizarria e até eu próprio me questionei da razão de estar assim. Não o consegui evitar. Pouco me recordo de ter saído de casa, do que me levou a ir naquele preparo, sei apenas que entrei assim em reuniões de trabalho. Uns chinelos de pele, um roupão azul, sorrisos embaraçados e incrédulos. Mais do que uma vez na semana que agora acaba, este sonho fez-me acordar a meio das noites. Não por ser um pesadelo, mas pela convicção de que talvez fosse um prenúncio de realidade. Chinelos e roupão. Bem, o que posso fazer? Talvez comprar uns que sejam o mais parecidos com os que vi em sonhos. Para que o puzzle se complete. 

Ou então ir ao médico da cabeça, seria prova de prudência e maturidade. Mas um bom médico é tão assustador como um mau. Porque enquanto o mau pode confundir doenças e receitas, o bom pode dizer-nos com propriedade que já estivemos mais vivos… um faz-nos mal, mas mantém-nos a esperança de que o seu diagnóstico está errado. O outro faz-nos bem, mas o bem que nos faz pode ser a certeza de que mais nada há a fazer. Não, isto não é um dilema. Apenas uma constatação. Venha um bom médico. Mas que seja gentil.

Essa disse-me Manoel Oliveira há uns anos. «Tenho quase um século, quando vou ao médico ao menos que me tratem com gentileza». Boas memórias, Manoel. Adorava saber de si, agora que já conhece o segredo. As pessoas de olhos fechados, sem o coração em movimento, guardam nelas o segredo. Sentiram o parágrafo a ser colocado na sua história. Sabem a cor das fardas dos mestres-de-obras que, nos seus martelos e ferramentas, ergueram o ponto último do caminho, um muro que lhes tapou a vista dos outros actores da peça, de nós. Guardam nelas o segredo. Também por isso, nos funerais, despeço-me com solenidade – brindo ao que foram e àquilo que os seus olhos viram um momento antes de fechar. 

A vida é mesmo um espectáculo onde cada um de nós é actor principal na sua própria peça. Sou figurante de muitos enredos. Actor secundário noutros. E ajudante de protagonista na peça dos meus filhos e das pessoas que amo. Todos estamos no centro do mundo. Mas todos somos um satélite no mundo dos outros. Infelizmente não nos serve de nada tentar escolher os actores que colaboram na nossa história, o filme acaba sempre por ter vilões, polícias bons e gente indiferenciada que existe para nos distrair. Não sei se o meu filme já vai longo, talvez. Pressinto que algo está para jogar, algo de decisivo. Dizer outra coisa é desmobilizar os que ainda estão na sala.