Viciados na net: o lado negro da era digital

Não comem, não dormem e não estudam para jogar videojogos e navegar online. Dependem da tecnologia como de uma droga e destroem a vida familiar, social e profissional. Leia os testemunhos de ex-dependentes que conheceram o lado mais negro da era digital e o que dizem os especialistas sobre como lidar com o problema.  

Tudo começou com uma consola de jogos PlayStation, que João recebeu quando tinha nove anos. O vício pelos jogos online despontou a sério aos 15. «Comecei a jogar ainda mais horas aos 18, quando acabei o 12.º ano. Nessa altura jogava desde as 11 da manhã até cerca da uma ou duas da manhã do dia seguinte, com um intervalo de uma hora para almoçar», recorda.

João F. é uma das inúmeras vítimas silenciosas da era digital. Aficionado das novas tecnologias desde cedo, deixou-se cair na tentação do vício e conheceu o lado mais negro do universo www.

Um comportamento que lhe saiu caro, embora na altura não se apercebesse dos danos. «O meu vício pela internet e pelos videojogos fez com que desistisse de três cursos», revela. «Não ia às aulas porque não conseguia deixar de jogar e isso levava sempre a perder o ritmo e a matéria, o que me levava a desistir». O problema alastrou-se às relações pessoais. «Quebrou as ligações que tinha com os amigos e afectou também a minha vida familiar, pois fechava-me no quarto durante quase todo o dia».

Agora com 24 anos, João F. conseguiu «sair do fundo do poço», muito graças à ajuda de psicólogos especializados. Olhando para trás, considera: «Nunca pensei que jogar jogos o dia todo fosse algo sério. Nunca senti esse tempo como negativo, pois era algo de que gostava. Não via os problemas relacionados porque, para mim, o que estava a fazer era normal».

O número de casos de viciados na internet e em videojogos tem crescido em Portugal. «Não são muitos ainda os que pedem ajuda profissional, mas vêm sendo cada vez mais», afirma Luís Patrício, director da Unidade de Aditologia e Patologia Dual na Casa de Saúde de Carnaxide e autor do blogue Mala da Prevenção. Entre os sintomas apresentados, os pacientes mostram uma constante preocupação por estar online, mentem sobre o tempo que passam a navegar e apresentam uma redução drástica do período de sono ou até uma inversão dos horários.

Para estas pessoas, passou a ser normal estar permanentemente à frente do computador, o que provoca mudanças radicais nos seus hábitos de vida, alterações de humor, ansiedade e problemas escolares, laborais ou sociais. «Já tive um caso de um funcionário público que usava o tempo de trabalho para comunicar online com quem não conhecia, interpretando essa actividade, de forma delirante, como trabalho», conta Luís Patrício. «E outro de um estudante universitário que simulava sair e chegar das aulas, passando todo o dia e parte da noite, fechado no quarto ao computador».
 
Realidade alternativa
A má utilização da internet pode ser uma forma de escapar da realidade, um refúgio. Para Luís Patrício, «a internet é um universo por onde se circula por vias muito rápidas de acesso e de transporte de mensagens ou produtos virtuais, como as compras, o jogo e o sexo». O abuso pode «afastar o utilizador das pessoas com quem vive ou convive, aumentando a desorganização, a intolerância, os conflitos e levando, em muitos casos, à ruptura».

Os conflitos são algo que se tornou rotineiro na casa de Jorge V. (nome fictício), sobretudo quando a mãe percebeu que era quase impossível arrancá-lo do computador. «O Jorge sempre gostou de tecnologia. Ainda nem falava bem e já pedia o telemóvel ao pai para jogar», conta a mãe. «Quando lhe demos uma consola de jogos, aos sete anos, percebemos logo que ele não conseguia, voluntariamente, deixar de jogar e viciava-se muito rapidamente, irritando-se se lhe retirávamos o brinquedo», recorda. «O Jorge não joga à bola e tem dificuldades em fazer amigos, por isso, acabou por se refugiar no computador, onde se sente à vontade, ficando horas a fio a jogar».

As discussões e os conflitos não tardaram. «O Jorge não estudava bem, andava sempre muito irritado e não cumpria as regras em casa, o que originava discussões diárias, criando um ambiente que afectava toda a família», continua a mãe do adolescente.

«Hoje em dia, os miúdos passam muito tempo ao computador como actividade habitual, pelo que distinguir a partir de quanto é que começa a ser uma adição não é muito fácil», defende João Faria, psicólogo especialista em intervenção no uso da internet e das telecomunicações. «O principal sinal a que é preciso estar atento é à forma como os jovens reagem quando são retirados do computador, porque, em casos graves de adição, é de violência ou de tristeza profunda, sinais muitíssimos importantes de que há um consumo excessivo», desvenda o especialista. Estar muitas horas a fazer a mesma coisa, reagir de forma descontrolada e intensa quando retirados do PC, passar o dia a pensar em quando vão voltar para lá, estar distraídos na escola e baixar as notas são outros sintomas para os quais é preciso estar alerta. Quando existem problemas de adição, há ainda lugar a perturbações no sono, pois os jovens deitam-se mais tarde e acordam mais cedo para irem rapidamente jogar. «Embora não exista uma substância intoxicante no corpo a provocar a dependência, como no caso das drogas ou do álcool, os processos de resposta cerebral são idênticos», explica Nuno Moreira, do Centro Internet Segura, da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

23 horas a jogar sem sair da cadeira
A maioria dos casos ocorre entre os 12 e os 24 anos, embora o risco comece «a partir dos oito ou nove», sustenta João Faria. A adição mais habitual relaciona-se com os chamados jogos multiplayer, jogados via internet entre jogadores de vários países e nacionalidades. É criada uma sensação de grupo forte que provoca normalmente conflitos familiares. João Faria exemplifica: «É difícil cumprir as regras e manter os cuidados básicos, até de higiene. Tive um caso de um jovem que jogou 23 horas seguidas, sem se mexer do sítio onde estava.

Tudo o que tinha a fazer, a nível fisiológico, fê-lo ali mesmo. Não tomava sequer banho e não ia à escola». Nuno Moreira também tem lidado com casos extremos: «Chegou-nos um caso problemático de adição aos jogos de vídeo online, situação que estava a colocar em risco a intimidade de um casal de namorados. O parceiro, desempregado, consumia demasiado tempo com um jogo MMORPG [Massively Multiplayer Online Role Playing Game], faltando às aulas do curso de requalificação profissional para poder estar a jogar. E ainda gastava somas consideráveis de dinheiro em itens especiais para tornar as suas personagens mais poderosas. Muitas vezes não dormia para poder estar sincronizado com as equipas das quais fazia parte no jogo e sempre que falhava nesse apoio à equipa entrava em situações de frustração, com episódios de agressividade».

Começam agora a aparecer terapêuticas e métodos para tratar esta adição. No entanto, a melhor medida continua a ser a prevenção. «Trabalhar ao nível do currículo escolar os temas da gestão do tempo, da resiliência, do lidar com a frustração e a contrariedade e o uso saudável da tecnologia seria uma boa medida preventiva», defende Tito de Morais, professor e fundador do projecto Miúdos Seguros na Net, iniciativa que visa promover a utilização segura e responsável das novas tecnologias por crianças e jovens. «A adopção de regras na utilização das tecnologias é crucial para uma utilização saudável e equilibrada, nomeadamente a gestão do tempo de ecrã e a definição de prioridades», acrescenta.

Para o professor, devia ser dada mais atenção ao tempo excessivo gasto em videojogos, uma actividade da qual tradicionalmente os pais portugueses se encontram 'divorciados', dado que «a maioria não sabe lidar com o tema, por desconhecer a realidade e os jogos que os seus filhos jogam, e por se esquecerem de ocupar as suas vidas com outro tipo de actividades».

João Faria é da mesma opinião. No entanto, o psicólogo adverte para a importância das novas tecnologias nos tempos que correm. «Não se pode ter como objectivo a não utilização, deve sobretudo tentar-se reduzir o interesse e dosear, porque os miúdos têm hoje de fazer pesquisas na Wikipedia ou no Google e essas ferramentas tornam a internet e o contacto com o computador importantes».

Para Nuno Moreira, restringir ou bloquear o acesso à internet acaba por dar uma falsa sensação de segurança, pois hoje já é possível aceder em qualquer lado e «é preferível que esse acesso não seja feito longe dos pais».

O comportamento dos próprios pais face à tecnologia é também um factor da maior importância. «Muitas vezes, os filhos pedem atenção e os pais estão no Facebook ou a ver os emails», adverte João Faria. «Se caminham para a mesa do jantar e estão a ver as mensagens, mesmo que sejam do trabalho, ou vão jantar fora e estão a ver um vídeo no YouTube, os pais estão a ser modelos de um uso excessivo e que interfere com a dinâmica familiar», acrescenta o especialista.

Outra prática aconselhada pelos especialistas é… jogar. «Só muito raramente encontro pais que partilham a experiência do jogo com os filhos», conta João Faria. «Não reconhecem a importância que tem para eles, não conseguem falar sobre o jogo porque não o conhecem nem compreendem e, por isso, não conseguem detectar nem perceber até que ponto aquele interesse está a caminhar para um vício. Eu sugeriria aos pais: sentem-se e joguem».

Jorge V., que sofreu na pele as consequências de horas incontáveis a jogar, aconselha os mais novos a não negligenciar o que existe fora de casa. Para o ex-dependente da internet, é importante que os mais novos «não percam partes da vida por algo que é um prazer temporário».

Respostas e tratamentos
As consultas de psicologia são o primeiro passo para resolver o problema da adição. Após alguns meses de consultas com João Faria, a mãe de João F. revela que já se vêem diferenças assinaláveis: «Ele tem mais regras e cumpre mais vezes os horários estipulados. Começa a ser mais responsável, sobretudo se tiver de se levantar cedo no dia seguinte. Noto uma consciencialização muito maior».

Um tratamento pode custar cerca de 1600 euros anuais, dependendo se é feito em regime de internamento completo ou em área de dia e também do preço dos medicamentos receitados. Há várias clínicas privadas que já tratam deste tipo de adição, mas, no Serviço Nacional de Saúde, apenas o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e os Hospitais de Coimbra têm resposta para o problema. «O Centro Internet Segura tem acompanhado a produção teórica e técnica sobre o fenómeno, de forma a poder aconselhar pedidos de apoio que cheguem através da Linha de Ajuda ou para poder trabalhar activamente no campo da prevenção», afirma Nuno Moreira. «Tanto no campo da prevenção como no do tratamento, o CADIn [Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, uma instituição de solidariedade que promove a integração] possui uma rede de formadores que realiza sessões de sensibilização gratuitas para pais e professores, focando a explicação do fenómeno, os sinais de alerta e o que deve fazer-se», acrescenta o responsável. «Além disso, em casos já sinalizados, o CADIn dispõe de um serviço de intervenção clínica especializada».

O tratamento varia consoante cada caso, mas tem como denominador comum a aprendizagem de novos comportamentos. Além disso, afirma Luís Patrício, «podem ser utilizados medicamentos para tratar a sintomatologia depressiva muitas vezes existente, que combina perturbações de ansiedade com impulsividade e até sintomatologia psicótica com alterações da percepção da realidade».