O Paco partiu em viagem

O veterinário rapou-lhe os pêlos de uma das patas dianteiras com uma máquina eléctrica, disse à enfermeira para lhe fazer um garrote de modo a evidenciar a veia, espetou-lhe a agulha e começou a empurrar o êmbolo da seringa. Eu desejei que aquilo acabasse depressa. O meu filho mais velho abraçava o Paco e eu…

“Foi um cão com sorte, teve uma boa vida” – comentou o veterinário enquanto arrumava a seringa. E eu, querendo acreditar no que ele dizia, não pude evitar a dúvida: teve mesmo? É claro que sempre o tratámos bem. Mas o Paco não convivia com outros cães, e eu interrogava-me muitas vezes se poderia ser feliz assim, vivendo só connosco.

Fiquei mais tranquilo depois de ler, no ano passado, um excelente livro de Daphne Sheldrick que fala da vida em África e das relações sentimentais que a autora estabeleceu com vários animais. Sobretudo elefantes, mas também rinocerontes, búfalos e mesmo pássaros. Aí percebi que todos os animais conseguem ter relações profundas e duradouras com os seres humanos. E que essas relações podem preencher-lhes boa parte das necessidades afectivas.

O Paco surgiu em nossa casa numa bela manhã pelas mãos do meu filho mais velho, faz agora 16 anos. Depois de uma noite de peregrinação pelas discotecas, o Francisco comprou a um vagabundo um rafeiro bebé, pela considerável quantia de cinco contos. Nunca tinha havido um cão lá em casa, pelo que não sabíamos como lidar com ele. Fechámo-lo na cozinha – mas rapidamente tivemos problemas pois ele gania e arrastava o prato da comida, provocando queixas veementes da vizinha do lado, que argumentava não conseguir dormir.

Mudámo-lo então para um quarto situado no lado oposto da casa, e prendemo-lo com uma corrente a um sofá. Mas em pouco tempo ele destruiu-o completamente, desfazendo as almofadas e a própria estrutura. E, quando começou a andar pela casa, roeu os pés das mesas e tudo aquilo que apanhava com os seus dentinhos afiados.

Quando ficava sozinho punha-se a ladrar, ao ponto de os vizinhos chamarem a Polícia ou irem bater-me à porta. Acabei por comprar um aparelho chamado (pouco subtilmente) ‘Cala-cão’, que, sempre que ele ladrava, emitia um sinal sonoro incómodo, mas só apreensível por cães. Ele passou a ladrar menos e os vizinhos passaram a protestar menos.

Mesmo assim tornou-se o terror do prédio e até o reguila do bairro, pois, não sendo muito grande – era um cão médio, com 15 quilos de peso – tinha ar de mau. A pelagem tigrada, castanha clara e negra, e o facto de ladrar agressivamente aos estranhos, contribuía para isso.

O Paco habituou-se desde pequenino a andar de carro e acompanhava-nos para todo o lado. Aliás, tive de passar a ter sempre uma carrinha, para o transportar na parte de trás. A primeira vez que andou em liberdade foi no monte que temos no Alentejo, depois de tomar as primeiras vacinas. E desde aí ficou a adorar aquele sítio. Quando lá ia, dormia durante toda a viagem – mas a cerca de um quilómetro do destino levantava-se e começava a ganir, ansioso pela chegada. E mal saltava do carro desaparecia por algum tempo – e nós suspeitávamos que ia visitar uma cadela de um monte próximo, a Andorinha.

Um dia desapareceu por várias horas, e quando começávamos a ficar inquietos, ele surgiu exalando um cheiro nauseabundo. Percebemos que tinha estado num chiqueiro de porcos, certamente atraído pelo cheiro da comida. Mas livrou-se de boa, pois os porcos quando se enfurecem são muito agressivos e poderiam tê-lo morto à dentada.

Noutra altura desapareceu à noite. Eu e a minha mulher deitámo-nos, embora com o ouvido alerta, à espera de o ouvirmos raspar na porta. Mas ele não aparecia – e a dado momento começou a cair aquela chuva de pingos grossos que parecem bagos de uva. Saltei da cama, calcei os sapatos, vesti uma gabardina e fui para a rua. No meio da tempestade gritei por ele com quantas forças tinha: “Pacoooo! Pacoooo! Pacoooo!”. Mas a tempestade era mais forte do que eu. Até que do meio da noite e da chuva lá surgiu o Paco, correndo para mim e olhando-me com estranheza, não percebendo a minha aflição.

Mas em Lisboa, quando o passeava à noite, era ele quem ficava aflito quando me perdia de vista. Corria como um louco, espreitando por aqui e por ali, até me encontrar. E são esses momentos que unem os seres.

Escrevi um romance, O Cão Que Pensava Demais, que lhe dediquei com o seguinte texto: “Ao Paco, que inspirou uma das personagens principais deste livro, que me acompanhou silenciosamente em intermináveis noites a escrevê-lo, e que ainda por cima nunca o poderá ler”.

Quando o Paco adoecia, era uma aflição lá em casa – e fiquei a saber que os cães tomam os mesmos remédios dos humanos. Mas, como todos os rafeiros, ele era bastante resistente e ultrapassava as doenças com facilidade.

Até que começou a ficar velho. O primeiro sinal foi quando, na tijoleira do Alentejo, um dia escorregou, abriu as patas e ficou esparramado no chão a fazer a espargata, sem conseguir levantar-se. Depois, a pouco e pouco, foi ficando com os músculos das patas traseiras atrofiados e perdendo a força. Às tantas já tropeçava nas próprias patas e começou a cair. Na rua, eu disfarçava, levantava-o com a trela, tentando não expor a sua decadência física à curiosidade dos vizinhos.

Ele dormia normalmente nos sofás da sala de estar, embora não tivesse poiso certo. À noite, quando a minha mulher se deitava e ficávamos só os dois na sala, escolhia estrategicamente o lugar de modo a poder ver-me com facilidade. Mas também começou a ter dificuldades em subir para os sofás. Até que uma vez não conseguiu mesmo fazê-lo – e dormiu no chão. Percebemos que o fim estava próximo. Ainda tomou umas injecções de esteróides anabolizantes, daquelas que os atletas tomam para engrossar os músculos, mas foram fazendo cada menos efeito.

No último dia o Paco já não se levantou da cama nem comeu. À noite falámos ao veterinário – o Dr. Vasco Beau Ribeiro –, que mora no andar mesmo em frente do nosso e que sempre o tratou. Telefonei também ao meu filho mais velho, que veio logo. Curiosamente, o Paco continuava a vê-lo como o seu primeiro dono, não se esquecendo que fora ele quem o trouxera para casa.

Fizemos o ponto da situação. O veterinário disse que a decisão era nossa, mas que o animal já não tinha forma de recuperar. O meu filho ainda sugeriu que adiássemos a decisão para o dia seguinte, mas eu contra-argumentei: “Isso só vai aumentar o sofrimento dele e o nosso”.

Metemo-nos os três – eu, o meu filho e o Paco – na carrinha em direcção à clínica, em Odivelas. O carro do veterinário seguia à frente. O Paco ia na cama dele. Noutra altura, isso seria impensável: mal levantássemos a cama do chão, ele saltaria. Mas deixou-se transportar docilmente. Chegados à clínica, pusemos a cama em cima da marquesa e depois já sabem o que aconteceu: o veterinário raspou uma pata dianteira, procurou a veia e espetou a agulha. “Isto é uma anestesia. Só que quatro vezes mais forte do que a dose para uma operação. Vai adormecer e já não vai acordar” – explicou, enquanto premia o êmbolo da seringa.

Uns dias depois, no Alentejo, o meu neto mais velho, o Mateus, de cinco anos, perguntou pelo Paco. Respondi-lhe: “O Paco foi fazer uma viagem”. “Onde?” – quis saber o miúdo. “Muito longe”.

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