Um terço dos homicídios são passionais

Os crimes conjugais podem representar já um terço dos homicídios cometidos em Portugal. Segundo dados do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), em 2014 houve 100 assassínios. Comparando este número com as 35 mulheres mortas pelos maridos, namorados ou ex-companheiros contabilizadas pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), verifica-se uma incidência de um terço…

O RASI não fez as contas, contudo, às mortes que ocorreram entre pessoas que mantinham uma relação de intimidade. Ao contrário do relatório de 2013, que  referia a ocorrência de “40 homicídios conjugais/passionais, os quais tiveram como resultado 30 vítimas do sexo feminino e 10 vítimas do sexo masculino” – num total de 116 homicídios, ou seja uma incidência de 34% -, este ano o Gabinete Coordenador de Segurança não incluiu essa informação. O documento refere apenas que entre as 100 vítimas de homicídio, “verifica-se que 25 resultam de ocorrências em contexto conjugal ou relação análoga, sendo todas do sexo feminino”. Mas em explicações ao SOL fonte do Gabinete que elaborou o RASI adiantou ainda que, mesmo dentro deste número, “poderão existir vítimas não directamente relacionadas com quadros de violência doméstica”.

Noutra referência ao assunto, o RASI fala numa percentagem de 17% dos homicídios cometidos em contexto conjugal ou análogo, ou seja, 17 mortes, em números absolutos. O Gabinete Coordenador de Segurança esclarece: os “valores indicados reportam-se a participações que deram origem a abertura de inquérito, cuja investigação pode demonstrar factualidade diferente da qualificação do tipo de crime inicialmente atribuído”. Ou seja, se na altura da participação, o crime não surge como decorrente de um problema de violência doméstica, a investigação pode vir a demonstrá-lo.

Confusão de estatísticas

Carlos Anjos, presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crime, reconhece que a confusão em torno dos números é grande, pois a forma como as várias entidades os contabilizam e analisam difere. E isso dificulta a percepção da realidade, diz. Sobre o RASI, avança uma explicação: “Será que não são contabilizados ex-companheiros e namorados, mas apenas casados ou unidos de facto?”

A UMAR explica que a sua contabilidade das mulheres assassinadas é feita com base em notícias divulgadas pela comunicação social. Por isso, o relatório que produz anualmente contém o nome da mulher, o local do crime e a relação entre vítima e agressor, seja ela presente ou passada.

Em 2014, segundo esse registo,  foram assassinadas 43 mulheres, 35 das quais tinham relações de intimidade presentes ou passadas com o agressor, e oito em contexto de relações familiares privilegiadas. A maioria tinham entre 36 e 50 anos, mas houve três casos em que a vítima tinha menos de 23. Os números são mais altos em Setúbal e Lisboa. A violência doméstica surge com a principal motivação/justificação do crime (56%), seguindo-se os ciúmes e a não aceitação do fim da relação.

Sobre a diferença entre estes números e os do RASI, Elisabete Brasil, da UMAR, aponta uma explicação: “Quando há uma agressão no casal da qual resulta a morte, o crime pode ser classificado como crime de violência doméstica com dano de morte (como prevê a lei) e não como homicídio voluntário consumado”. Contudo, a organização prefere centrar a discussão na dimensão dramática do problema e alertar: “Apesar de toda a sensibilização, o fenómeno não baixa e os quadros de vitimização mantêm-se”.

Homicídios caem há uma década, mas os conjugais não

Cristina Soeiro, psicóloga criminal da Polícia Judiciária (PJ), confirma que, apesar de o número total de homicídios ter diminuído nos últimos anos – de 145, em 2008,  para 100, em 2014- os crimes passionais mantêm-se muito elevados: “Entre 30 a 50 por ano”, afirmou ao SOL. “Os homicídios estão a cair porque há mais mecanismos de controlo social, formais e informais. Há mais leis, punições e vigilância, e as pessoas têm uma percepção de que vão presas. E até motivações como a defesa da honra têm hoje menos impacto”, explica a especialista da PJ que estuda o perfil do agressor. “Nos homicídios com motivações emocionais, como os conjugais, isto é mais difícil de controlar. Os agressores são mais imediatistas, não antevêem as consequências dos seus actos”.

A psicóloga da PJ explica que a investigação já permitiu traçar vários perfis destes agressores: são impulsivos, têm baixo autocontrolo, menos competências e alguns um padrão clínico, como uma patologia. Dentro destas características, há factores de risco que aumentam a probabilidade de haver um crime: o pedido de separação e o acesso a armas de fogo. Nos homens, o crime está mais relacionado com a perda de poder na relação. “Por isso, eles matam mais quando elas querem separar-se. Ou mesmo que seja vários anos após o divórcio, quando se apercebem que ela já não vai voltar”, exemplifica.

Carlos Anjos acrescenta: as mulheres matam de forma premeditada, atacando o homem quando está indefeso. Como ocorreu em Évora, em 2013, quando uma mulher de 35 anos envenenou o marido e depois ateou fogo à casa.

Este ano, parece verificar-se uma nova variação neste tipo de crimes conjugais, sublinha o presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes: os homicídios cometidos por homens mais velhos, seguidos de suicídio.

Este ano, até ao final do mês de Março, ocorreram dez crimes envolvendo casais e em oito dos casos o agressor suicidou-se. Ainda no mês passado, um homem de 80 anos disparou sobre a mulher enquanto esta dormia, em Sever do Vouga, e matou-se depois. “Parece ser um quadro novo. Mas não temos ainda uma explicação. Como são mais idosos, pode ser para evitarem morrer na prisão”, aponta Carlos Anjos.

Cristina Soeiro também diz ser difícil tirar conclusões. E afirma que entre o perfil de agressores traçado pela PJ há um em que os homicidas são mais velhos. Nesses casos, e quando não há historial de violência doméstica, a motivação pode não estar relacionada com a conjugalidade, mas com problemas de saúde ou dinheiro.

No ano passado, a maioria das vítimas não eram mulheres mais velhas, mas tinham idades entre os 36 e os 50 anos, muitas com filhos pequenos. Os dados das indemnizações pagas pela Comissão de Protecção às Vítimas de Crime demonstram isso mesmo: mais de metade das vítimas apoiadas (32) eram crianças com menos de 14 anos que ficaram sem os pais na sequência de um homicídio.

Estão a aumentar os casos de violência doméstica?

Apesar do número dramático destas mortes, os números da violência doméstica parecem não estar a subir.

O Relatório Anual de Segurança Interna refere um aumento de 31 crimes e um total de 27.317 participações, menos uma do que no ano anterior. Destas, 72% estavam relacionadas com problemas conjugais, a maioria entre pessoas que mantinham uma relação de intimidade e 16% entre ex-cônjuges e ex-companheiros. As restantes queixas envolvem pais, padrastos, filhos ou enteados.

O relatório refere ainda um aumento das detenções por crime de violência doméstica: de 510, em 2013, passaram para 618, no ano passado.

rita.carvalho@sol.pt