Do sonho à revolução, a música agitou Cabo Verde

No voo de regresso a Lisboa, vindos da cidade da Praia, em Cabo Verde, o único lugar vago no avião é ao nosso lado. Obra do acaso, quem o ocupa é um homem com dois chapéus na cabeça, um deles comprado nesse mesmo dia na Cidade Velha. Trata-se de Jowee Omicil, o saxofonista canadiano de…

Mas as quatro horas de viagem acabam por ajudar a remediar a falha, permitindo-nos perceber o carisma do músico, que até aqui só tínhamos conhecido pela voz de terceiros. Falador incansável, dono de um humor muito singular, o músico não dá tréguas à faceta de comunicador, um dos elogios mais repetidos por quem se rendeu ao seu espectáculo. Responde afável a todas as solicitações dos passageiros – na sua maioria jornalistas, artistas e agentes musicais –, saltitando entre idiomas com a mesma facilidade com que manuseia os sopros. “Falo seis línguas acordado e 16 quando estou a dormir”, brinca, enquanto solta algumas frases em chinês e em português.

Além da predisposição para aprender línguas, Omicil conta-nos que ter nascido no Canadá, onde aprendeu a falar francês e inglês, ser filho de um pastor do Haiti, de quem herdou o crioulo haitiano e uma sabedoria bíblica que o faz introduzir muitas vezes comentários espirituais na conversa, ter família no Panamá, para onde viaja com frequência, e ter estudado na prestigiada Berklee College of Music, em Boston, o tornou um homem bastante extrovertido. Compreendemos, mas acreditamos que não foram só as circunstâncias que o tornaram assim.

No mesmo avião, viaja, em executiva, Esperanza Spalding, o nome forte deste ano do Kriol. A artista, que já ganhou quatro prémios Grammy, é tudo menos ‘terra-a-terra’. Aliás, uma das muitas exigências que a cantora e contrabaixista americana fez à organização foi esvaziar os bastidores quando entrasse e saísse do seu camarim (‘expulsando’ Lura e Céu da zona reservada aos artistas que actuaram nesse dia), de modo a não se cruzar com ninguém. Também recusou todas as entrevistas e só em cima do espectáculo autorizou que a fotografassem.

Apesar da diferença de idades, Jowee Omicil (37) e Esperanza Spalding (30) ainda se cruzaram nos corredores da Berklee, escola de jazz que conseguiram frequentar graças a uma generosa bolsa de estudo, mas é difícil acreditar que o abismo humano que hoje os distancia é só fruto dos prémios que a norte-americana recebeu. Especialmente quando outro consagrado, o baixista camaronês Richard Bona, que também conta com indicações para os Grammy, não mostrou qualquer tipo de vedetismo, passeou-se pela cidade da Praia como um local e até promoveu uma masterclass especialmente direccionada para os músicos cabo-verdianos.

Por estes dias, conta-nos Omicil, ele e Bona planeiam a gravação de uma colaboração conjunta em Paris, para onde se deslocaram depois do Kriol Jazz Festival. Os dois músicos já se conheciam há alguns anos, mas em Cabo Verde estreitaram relações ao ponto de ponderarem fazer música juntos. E este cenário é uma possibilidade para outros tantos músicos que, na semana passada, se deslocaram à cidade da Praia para participar no Atlantic Music Expo (AME), evento transatlântico com o qual Cabo Verde pretende colocar-se no mapa das indústrias culturais e que antecede o Kriol.

Na sua terceira edição, são muitos os exemplos de como esta feira de world music pode catapultar a carreira de qualquer artista. Há um ano testemunhámos o interesse do sul-coreano Jung Hun Lee, director do Festival Ulsan World Music, em Dino D’Santiago. Em Outubro, o cantor português de origem cabo-verdiana viajou até à Coreia do Sul para três concertos. Há dois anos, a cabo-verdiana Nancy Vieira e a fadista Joana Amendoeira actuaram juntas e ainda no mês passado levaram esse espectáculo a Paris.

Para breve, conta-nos Christine Semba, delegada do Womex (o mais importante mercado de world music) responsável pela AME, o prestigiado Barbican Centre, em Londres, planeia um programa inteiramente dedicado a Cabo Verde. “Não sei quando acontecerá, mas isto só foi possível depois de Bryn Ormrod [programador musical do centro cultural] ter vindo ao AME no ano passado, ter conhecido a realidade musical do país e ter percebido as enormes potencialidades dos artistas locais”.

Fruto da edição de 2014 também foi o showcase, este ano, de Bitori, músico cabo-verdiano de 76 anos praticamente desconhecido fora das ilhas crioulas. O septuagenário, considerado uma lenda do funaná, foi descoberto pelo tunisino Samy Ben Redjeb, “um tipo maluco”, como o define Christine Semba, que colecciona discos africanos em vinil das décadas de 1960 e 1970 e que recentemente criou a editora Analog Africa para reeditar algumas dessas pérolas.

No ano passado, Redjeb passou pelo AME para animar uma das festas da feira como DJ e resolveu ficar em Cabo Verde mais um mês, à procura de novos artistas. Bitori, natural da ilha de Santiago, foi o achado mais interessante e hoje a Analog Africa está a planear a reedição do seu único álbum gravado, Bitori Nha Bibinha, de 1997, e a agendar uma digressão mundial.

Quais os artistas que vão vingar depois da edição deste ano ainda é cedo para saber, mas não é difícil fazer prognósticos. As estreantes Karyna Gomes, da Guiné, que no final de 2014 lançou Mindjer, e Elida Almeida, de Cabo Verde, que apresentou em Dezembro Ora Doci Ora Margos, são duas das apostas mais seguras. Noutro campeonato, a consagrada Lura também beneficiou da forte presença de imprensa estrangeira e de vários agentes musicais no país.

Apesar de ter actuado no último dia do Kriol Jazz Festival, já alguns dias depois de o AME ter terminado, foi comum ouvir elogios em vários idiomas à sua prestação. Não é para menos. Desde 2009 que não lança nenhum disco de originais e a curiosidade sobre o novo trabalho, que deverá chegar no segundo semestre deste ano, é muita. Ao SOL, a cantora revelou que o registo terá, maioritariamente, temas de batuque e funaná.

A revolução de Awadi

Outro artista-sensação do AME foi o senegalês Didier Awadi, uma espécie de Che Guevara africano que acredita na força da música para desencadear revoluções. Aos 45 anos, este activista, fundador do hip hop no Senegal e consultor da Universal Music para o mercado africano, orgulha-se de ter forçado a saída do antigo Presidente Abdoulaye Wade, que esteve no poder 12 anos e assim pretendia permanecer até morrer, e ter contribuído para a queda do regime ditador de Blaise Compaoré, no Burkina Faso.

Alguns dias antes de chegar à Praia, Awadi tinha regressado a Ouagadougou, capital daquele país africano, para promover um single colectivo u em protesto contra a violência sexual da seita islamita radical Boko Haram na Nigéria. Antes disso, esteve em Kinshasa, na República Democrática do Congo, a exigir a libertação de artistas detidos ilegalmente numa manifestação contra o governo do General Kabila. “O conselho que lhes dei foi: ‘Libertem os meus ‘irmãos’ e os ânimos vão acalmar.’ Eles assim fizeram”, disse no debate ‘A revolução não será televisionada. Como é que a cultura está a construir um novo futuro?’, perante uma plateia rendida às suas palavras.

Antes de atingir esta posição de representante maior dos rappers contestatários da África Ocidental, Awadi estava concentrado em criar hip hop em wolof, a língua da etnia dominante no Senegal, e a montar aquele que é hoje um dos melhores estúdios de gravação em África, o Sankara, em Dakar. É por isso com algum espanto que o vemos, um dia depois da palestra, a cantar músicas de Beyoncé, Shakira e White Stripes no meio de canções claramente panfletárias que espelham as dificuldades dos países africanos. Mas rapidamente se percebe: ao não menosprezar o mainstream, Awadi atrai mais público para os seus concertos e, como consequência, passa a sua mensagem a mais gente.

Nem de propósito, durante a sua passagem pela Praia, centenas de cabo-verdianos, sobretudo jovens, protestavam nas ruas contra o diploma que pretendia aumentar em 65% os salários da classe política num país de emigrantes e desempregados. Não sabemos se algum dos manifestantes ouviu as ideias revolucionárias de Awadi, mas o timing não poderia ter sido melhor. Especialmente porque o diploma acabou por ser vetado pelo Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, alvo de uma forte ovação popular na abertura do Kriol Jazz Festival, onde o chefe de Estado discursou no mesmo dia em que recusou o projecto de lei.

Mas o clima de instabilidade política já tinha chegado ao AME dias antes, quando o ministro do Ensino Superior e da Ciência, António Correia Silva, contou que tinha lido nas redes sociais “o protesto de um jovem contestatário, como todos os jovens devem ser”, em que dizia algo como “não queremos música, queremos trabalho”. “Então venha porque queremos criar trabalho com a música”, declarou o ministro, sentado ao lado de Mário Lúcio, o titular da Cultura cabo-verdiana e responsável pela realização, desde 2013, deste mercado transatlântico na Praia.

Quando criou o AME, Mário Lúcio sempre disse que, a partir da terceira edição, queria que o evento saísse das mãos do Governo para se livrar dos ciclos políticos. “O ministro mais louco que Cabo Verde já teve fui eu, mas pode vir outro que fará mais estragos. É preciso salvar as coisas. Coloquei essa questão ao Governo e tanto o primeiro-ministro como a ministra das Finanças disseram que vamos continuar”, anunciou confiante. Mas para isso é preciso que o próximo Governo, que tomará posse no primeiro trimestre de 2016, assim o queira. José Maria Neves, o actual primeiro-ministro, está no poder há 14 anos e já revelou que não tenciona candidatar-se a um quarto mandato nas eleições de 2016. Assim, a continuação da AME em Cabo Verde também não é certa e essa dúvida permaneceu durante toda a semana em que a Praia se transformou na capital da world music. Pelo menos, a julgar pela reacção de Mário Lúcio, quando questionado pelo SOL sobre o assunto. “Vamos beber um copo”, rematou, depois de se esquivar várias vezes a esclarecer se já foi assinado o diploma que prolonga oficialmente o evento caso o Governo mude. Até porque, uns dias antes, tinha anunciado que “vai haver AME por mais dez anos”. l

alexandra.ho@sol.pt

* o sol viajou a convite da Tumbao