As mulheres que me intimidam

A maioria dos homens gosta de mulheres que olhem pelo canto dos olhos, não as que nos vêem por inteiro e de frente. As segundas intimidam, colocam em causa, afrontam o campo masculino, são má companhia para a eternidade e bons objectos de paixão, troféus de caça para os que se vangloriam em jantares de…

É uma questão de gostos, tenho o meu. Depois há o que considero, arrogantemente, pertencer ao domínio do universal. Gente com determinados valores pensa no geral de uma maneira idêntica, o básico que nos faz ser civilizados. Quando amamos alguém, a forma como a (o) vemos é o que mais nos pode aproximar ao sobrenatural. Porque se crescemos na ideia de que Deus é amor então também o podemos ser. Depois, a partir daí, é sempre a subtrair – porque ao que em nós é divino descontamos o tempo em que somos incapazes de amar. Por isso, não há sentimento mais arrogante do que o amor. E menos humano. Uma maravilhosa recusa da nossa miserável condição. 

Amor e ódio, duas faces, lugar-comum entre os nossos lugares-comuns preferidos. Conheci uns quantos que gostavam de odiar. Mas nenhum dos que conheci suportava a hedionda ideia de que poderia não ser detestado pelos homens ou mulheres a quem odiava. Mais do que natural. É, aliás, um sentimento parecido ao do amor ou à amizade. A reciprocidade é necessária em tudo, até no ódio. Não o alimentemos então, é o melhor que podemos fazer contra ele. Não odiemos quem nos odeia. 

E sempre de olhos abertos à vida. Para quê estar com olhos fechados se o tempo leva o mesmo a passar. Porque se um dia as estrelas deixarem de ser estrelas, ou o seu contrário, não estarás lá para ver. Como a luz, o dia e a noite ou o que faz da nossa 'vida' a carne e o peixe, os golos, o cheiro dos filhos, o vento na cara, a chuva nos ossos… um dia, o céu tocará o chão e não soprará uma brisa. Um dia serei o que foi. Seremos todos. Nós os dois e todos os que conhecemos. E não haverá desculpas. Será o que é. Sem máscaras. Espero reconhecer-me, e reconhecer-te claro. Logo, olhos abertos. 

E cuidado na cozinha, com os temperos. Costumo dizer que se na terra dos deuses e querubins existir uma cozinha, a imagino com formas que são o resultado da soma de todos nós, uma outra espécie de vida. Os meus sonhos são férteis, reconheço. Nessa cozinha há um frasco de qualidades e virtudes, outro para os defeitos, e chefs que misturam umas coisas com as outras e põem ao forno o que depois seremos. Preparam-nos a olho, de quando em quando riem uns para os outros – talvez porque a mão de algum lhes escorregou para a asneira e o fez abusar da soberba ou da gula, não sei. Já as virtudes são mais sérias. Quando alguma forma é besuntada na base com humildade, os outros param o que estão a fazer e observam solenes – quando tal milagre acontece, brindam entre eles com um vinho especial, e rezam para que nunca lhes falte a base de todas as virtudes. A humildade está pela hora da morte, mas sem ela, sem essa base, qualquer das outras qualidades não terá o mesmo sabor. Brindemos também a isso. 

E não o façamos com preconceitos. O grande problema na relação com os outros está na maneira como insistem em ver-nos. Alguma coisa acabará por nos faltar e lentamente sentiremos a falta de nos verem como realmente somos; não apenas como gostariam que fôssemos. Jogo complexo. Porque fazemos o mesmo que criticamos e nos magoa. E porque quando nos olham por completo, quando de nós conhecem entranhas e atalhos, é real a possibilidade de se tornar insuportável o que vêem. Pergunta-te então. Quero ir mesmo até ao fim? Quero ver mesmo e poder perder tudo a seguir? Ou ver só o que me interessa e viver pela metade?

Não temos muita margem ou, pelo menos, não temos toda a margem. As rugas são apenas uma das consequências do gastar dos anos. Há outras, como a do Natal que deixa de nos pertencer – passou a ser uma data, não uma condição. Antes, víamos as luzes na árvore e sentíamo-nos protegidos, o bacalhau sabia a infância e a família era uma rede que julgávamos eterna. Agora gostamos de ver as crianças, mas árvore, bacalhau e família deixaram de saber ao mesmo. Quando desmontamos o Natal guardamo-lo numa caixa enquanto no passado o mantínhamos vivo. Bastava chegar a casa, o lugar onde encontrávamos sempre o que esperávamos. 

E já que estou numa de falar contigo, num 'tu' que é próprio da intimidade da escrita, deixa-me que te diga outra coisa. Acredito na repetição. Porque aquilo que cada um de nós é passa por aquilo que faz todos os dias. Se nos deixamos ir na corrente, ao sabor do que é insignificante, do que é uma soma de gestos que apenas atestam que estamos vivos, a repetição torna-se mecânica e envenena-nos o que em nós é humano e transformador. Mas se conseguirmos, dia após dia, pensar no que podemos fazer, no que queremos influenciar de pequeno ou grande, naquilo que desejamos oferecer a nós próprios, então a repetição pode trazer-nos um mundo novo. Se te formatas para o que é mecânico tornas-te uma máquina que se alimenta como um ser humano. Se te formatas para encontrar respostas (e novas perguntas) esbarrarás com o que ainda não conheces. De um modo ou de outro repetes gestos. Repetição atrás de repetição. És um hábito.