Paulo Flores: ‘O palco é o lugar onde sou a pessoa que gostava de ser’

Neto de um transmontano, cresceu dividido entre Portugal e Angola. Nunca quis ser outra coisa que não músico e aos 16 anos gravou o seu primeiro álbum de originais, impulsionado pelo pai. Tornou-se a grande referência mundial do semba, no entanto nunca lidou bem com o sucesso. Retraído, confessa que se não fosse a timidez…

Antes de avançarmos tenho de lhe perguntar: como surgiu o seu penteado, com um penacho de cabelo colorido na nuca?

Este penteado chama-se ‘A Luz Foi’. [risos] A Irina, minha mulher, estava a cortar-me o cabelo na nossa casa nos Combatentes. E a luz bazou, que é uma coisa que acontece em Angola. Quando a luz falhou faltava cortar esta parte do cabelo. Olhámos um para o outro e começámos a brincar que era o penteado ‘A Luz Foi’. Saí à rua e, de repente, muita gente jovem começou a meter-se comigo, achavam que o ‘kota’ estava maluco. Percebi que o cabelo, por vezes, é mais importante que tudo o resto e resolvi manter o penteado. Tornou-se uma marca e os miúdos começaram a fazer igual. Já lá vão uns seis anos. É ridículo. Mas fiquei refém deste cabelo.

Em 2014 deu vários concertos em Angola para celebrar 25 anos de carreira. Agora chegou a vez de Portugal, onde já tocou no Porto e dia 29 sobe ao palco do CCB, em Lisboa. Que concertos são estes?

São concertos que já devia ter feito, mas que faço agora para comemorar esses 25 anos. Normalmente faço shows de apresentação dos discos novos, mas as pessoas estão sempre a querer ouvir os sucessos. Este show vai fazer essa viagem por toda a minha carreira e vai dar oportunidade às pessoas de celebrarem comigo. Às vezes o artista fica refém do seu próprio sucesso, mas eu sempre procurei sair da receita fácil. Tenho uma música que fiquei dez anos sem cantar, o ‘Chérie’. Foi o meu primeiro sucesso e até hoje é das minhas músicas mais conhecidas. Mas eu fi-la com 16 anos, é difícil aos 43 cantar as mesmas músicas. Neste caso é diferente porque estou a celebrar. Além disto, hoje em dia consigo perceber u o amor que aquilo causou nas pessoas. Isso dá-me vontade de lhes dar o que elas querem.

Sente que nunca atingiu em Portugal o sucesso que teve em Angola?

Quando lancei o ‘Chérie’ tive algum sucesso aqui também. O ‘Coração Farrapo’, tema do meu terceiro álbum, esteve dois meses em primeiro lugar no top da Rádio Comercial e vendeu cerca de 90 mil cópias. Mas eu não gostava de ir tocar aos sítios para onde me convidavam. Normalmente queriam que fosse tocar playback com duas bailarinas, que era o espaço que a música africana tinha naquela altura em Portugal. Mas eu não gosto de playback! Então não ia. Podia ter dado muitos shows nos primeiros anos que não dei porque gostava era de shows com banda. Retraí-me um pouco, continuava a compor, ia para o estúdio. O meu perfil nunca me ajudou, nunca fui uma pessoa que fosse à procura do sucesso. Pelo contrário, às vezes parece que me escondia. Sou muito mau a autopromover-me. A minha mulher está sempre a discutir comigo por causa disto. Ela é muito mais dinâmica. Mas eu estou bem assim. Estou feliz com o que tenho.

Mudou muita coisa entre o cenário que acabou de descrever e o actual fenómeno de popularidade da música angolana, liderado por Anselmo Ralph e Yuri da Cunha?

Essencialmente o que mudou foi a predisposição da sociedade portuguesa para aceitar a africanidade e essa forma de também ser português. Muita da kizomba que ouvimos é feita por portugueses e muitos dos aficionados são portugueses. Já nasceram e cresceram em Portugal. Nunca me tinha passado sequer pela cabeça ouvir gíria de Angola falada no centro de Lisboa por adolescentes portugueses! Para mim é uma alegria muito grande perceber que os jovens estão a olhar em frente e conseguem ser mais unidos do que a minha geração.

Os preconceitos ainda habitam na cabeça dos mais velhos?

Claro que sim. As pessoas acham que têm plena noção do que é o outro país. Eu cresci em Portugal, só ia a Angola de férias. Vivi sempre, e ainda vivo, entre os dois países. E em tempos também entre o Brasil, onde toquei muito com a Alcione, o Gilberto Gil e o Jaques Morelenbaum. Mas em relação a Portugal, a minha relação com o país foi sempre de amor. O meu avô materno era de Trás-os-Montes e tocava guitarra portuguesa. Chegava a Angola e sentia-me um marginal, mas chegava a Portugal e sentia a mesma coisa. E isto acontecia justamente por não haver esse elo entre os dois países que hoje começa a haver. Coisas como o anúncio do restaurador Olex foram-nos marcando e fazendo olhar de forma desconfiada uns para os outros. É importante que nós todos, angolanos e portugueses, percebamos que precisamos uns dos outros, com as nossas diferenças. Estamos a aprender a conhecermo-nos melhor. E o que vamos fazer daqui para a frente nesta relação é importante.

Não receia que o sucesso da música angolana em Portugal possa criar alguns conflitos?

É esse o meu medo… Mas isto não tem a ver com os angolanos, tem a ver com a política cultural em Portugal e com as empresas que organizam os festivais. Vejo grandes artistas do mundo inteiro virem a Portugal, mas raramente há espaço para os portugueses. Portugal tem de cuidar melhor dos seus criadores.

Costumam chamar-lhe ‘kota’ Paulo. Sente-se bem nesse papel de patriarca desta geração mais jovem de músicos?

O pessoal chama ‘kota’ a muita gente mais velha. Mas sinto-me bem com o carinho que os mais jovens me demonstram.

E também sente a responsabilidade?

Não, sempre pensei no meu contributo como o meu desabafo. É assim desde o início e não mudou assim tanto. Nunca me vi como um líder ou um comandante de qualquer movimento. Apenas como uma pessoa que participa e que tem preocupações em falar daqueles que vieram antes de mim, para tentar preservar a história. Foi o que fizeram comigo, porque eu tive a sorte de crescer junto dos mais velhos. Com 13 ou 14 anos os meus amigos tinham 20 e tal ou 30. Isso permitiu-me conhecer pessoas que tinham histórias para contar.

Sente que a geração mais jovem de músicos está muito deslumbrada?

Tenho essa preocupação. Curiosamente, os que estão a conseguir mais destaque são os que levam mais a sério e dificilmente se deixam deslumbrar. Por vezes tento dar uma dica ou outra, justamente porque têm muito carinho por mim, para ver se os ajudo a escolherem o caminho mais difícil.

Pedem-lhe conselhos?

Sim. E mostram o que estão a fazer e pedem-me participações em concertos. Tenho uma ligação muito próxima com o Yuri e também me dou bem com o Anselmo. Dos mais novos são os que conheço melhor. Mas há muita gente a querer ter voz na música. Claro que, se calhar, há dois mil artistas que não consigo perceber, mas há uns 20 ou 30 que têm muita coisa boa para transmitir.

E são muito diferentes do que era o Paulo quando, aos 16 anos, gravou o primeiro álbum de originais?

Não sei… Há alguns que olho para eles e revejo-me no meu início. A motivação que eles têm dentro do estúdio, a alegria que sentem. Vejo isso nos seus olhos e fazem-me acreditar.

Mas nenhum deles parece sofrer da terrível timidez de que o Paulo sofria e que inclusive o impossibilitava de falar com as pessoas…

Não sei… A timidez disfarça-se de muitas formas. Já estive ao lado de kuduristas, com aquela atitude expansiva, e percebi que eram iguais a mim. Às vezes falamos mais alto para disfarçar que não estamos à vontade. Acontece muito com os artistas haver uma certa bipolaridade entre a forma como se apresentam em palco e aquilo que são na intimidade. Para mim foi a música que me ajudou a transmitir mais alguma coisa porque eu era mesmo muito tímido. Até com a família. Havia pessoas que achavam que eu era muito convencido.

Como é que esse miúdo tímido sobe a um palco perante duas mil pessoas, naquele que foi o seu primeiro concerto?

Quando canto acontece qualquer coisa… Posso entrar nervoso e ansioso, com aquela adrenalina. Antes de entrar em palco até me dá sono, começo a bocejar, é muito estranho. Mas depois começo a cantar e transcende tudo. Sinto que não consigo cantar sem emoção e isso é muito exigente. Algumas músicas nem consigo cantar do princípio ao fim porque as coisas que estou a dizer são violentas. Talvez por isso nem reparo nas pessoas que estão ali à minha frente. O palco acaba por ser um lugar onde me sinto muito protegido, onde sou a pessoa que gostava de ser.

Nasceu em Luanda em 1972 e aí passou os três primeiros anos de vida. Tem recordações dessa época?

Poucas. Tenho recordação de ter voltado com a minha mãe, em 1977. Estivemos lá um tempo e depois a minha mãe viu que não dava e voltámos para Portugal. Um ano depois os meus pais separaram-se. Em 1979, comecei a ir para Angola nas férias de Verão.

Isso significa que as suas recordações mais fortes de infância são de Portugal, onde passou mais tempo?

Mais fortes, não sei. Em Angola tinha saudades da minha mãe, cá tinha saudades do meu pai. E chocava-me muito o que via em Angola. Na altura, aqui em Portugal havia uma série sobre escravos chamada Raízes, que tinha os mandingos. E a minha avó dizia-me que, se eu ia a Angola, tinha de ter muito cuidado, porque havia guerra. Depois disto, quando ia para lá, ia em u pânico. E claro que encontrava coisas muito diferentes de Portugal: havia militares na rua, havia uma tropa chamada UDP que fazia a protecção dos bairros. Lembro-me que, na primeira noite que dormi em casa do meu pai nos Coqueiros, acordei à noite e ouvi um barulho muito estranho. Vou à janela – era um segundo andar – e vejo muita gente na rua. Em frente ao prédio, numa casa cor-de-rosa que era a sede da UDP, estava um negro, muito grande, sem camisa, a ser chicoteado. Comecei aos berros a chorar e toda a rua olhou para mim. Foi a primeira vez que tive contacto com uma realidade que era: se apanhas um gatuno, espancas o gatuno para toda a gente ver e servir de exemplo. São coisas que me marcaram muito. Nesse mesmo Verão, logo no início, tinha morrido o Agostinho Neto e decretaram 45 dias de luto e que não se podia ouvir música. Mas lembro-me que ouvíamos uns discos do Muddy Waters, mas muito baixinho. Foi aí que comecei a perceber que fazíamos coisas erradas, mas que por vezes o errado era apenas ouvir música. Isso fazia-me confusão. Talvez estas coisas tenham feito com que as minhas memórias mais marcantes sejam de Angola. Mas depois, em Portugal, havia o preconceito.

Que sentiu na pele logo em pequenino?

Claro. Lembro-me de me chamarem muitas coisas, na escola, na rua… ‘Preto da Guiné, lava a cara com chulé’. Tive de arranjar formas de me defender e isso passou por arranjar os meus grupos que, muitas vezes, iam para caminhos errados. Tive a sorte de ter o meu pai sempre a chamar-me para a música. Podia ter sido um jovem revoltado e ter ficado pelo caminho, como muitos outros. Acho que só hoje percebo um pouco melhor certas conjunturas. Lembro-me de virmos de Angola e ficarmos no Lar Alvalade, com muitos refugiados e retornados, gente que, de uma maneira ou de outra, perdeu a vida que tinha. O nosso caso também foi esse. A minha mãe, a minha tia, os meus avós – veio toda a gente para Portugal, menos o meu pai, que só veio em 1986, para abrir a primeira casa dedicada à música angolana.

O seu pai esteve na frente do comboio da música angolana em Portugal, tendo aberto vários espaços que a promoviam.

Sem dúvida. Teve os primeiros espaços onde músicos como o Bonga passaram, mas também outras pessoas que tinham a ver com Angola. O meu pai serviu para unir essa diáspora. Sempre esteve ligado à música e nos últimos anos de vida voltou para Angola, onde esteve no Chá de Caxinde e no Marítimo da Ilha, espaços tradicionais que continuam a tocar semba. Foi com o meu pai que comecei a descobrir outra forma de ser africano. Com a minha mãe, a minha tia e as minhas avós, sentia uma africanidade submissa, onde as pessoas tinham medo. Com o meu pai conheci uma África alegre e assumida.

Olhando para a sua história familiar, nomeadamente para o seu pai, ser músico era inevitável?

Parece que sim… Com sete anos já cantava por cima dos discos do meu pai. Nunca pensei ser outra coisa sem ser músico. Quer dizer, ainda pensei ser palhaço ou bombeiro, quando era mesmo pequenino. Mas sempre cantei. Lembro-me que faltava às aulas para ficar a cantar atrás de um prédio. O facto de, aos 16 anos, ter gravado um disco de originais também não deixou muito espaço para ser outra coisa. Aliás, foi aí que me assustei um bocado porque o primeiro disco fez logo sucesso. E eu não percebi porquê. E não conseguia lidar bem com a quantidade de público que me aparecia à frente. Nos primeiros dois ou três anos, só me sentia bem em estúdio. Lembro-me que no primeiro show que fiz na Aula Magna, em Lisboa, o meu pai teve de me ir procurar e convencer-me a cantar. Sentia pânico. Achava a minha voz estranha e nem me conseguia ouvir.

O seu pai foi fundamental para o impedir de desistir?

Ele foi o grande impulsionador. Na vida e na forma como encarar a vida. O meu pai sempre foi uma pessoa muito alegre, sempre recebeu muitas pessoas, ajudou muita gente. Essa forma de dividir o que tinha com os outros foi um barómetro para mim e para os meus irmãos. Sou um pouco desapegado das coisas, ligo mais aos afectos. Sou capaz de dizer aos meus filhos que os amo umas 20 vezes por dia. E eles a mim. Não temos complexos no amor. Foi o meu pai que me ensinou isto. E ele achou sempre que eu ia ser o maior dos cantores. Mas sem ele seria muito difícil ter feito as coisas que fiz. Ele esteve sempre presente, pronto para me dar a mão.

E isso tudo contra a vontade da sua mãe, que queria que estudasse…

E com toda a razão! Mas eu lidava com muitos miúdos mais velhos, por isso estar na escola onde os colegas tinham a minha idade tornou-se complicado. Fui abandonando a escola, mas foi pena.

Vivia em Portugal e passava os Verões em Angola. Como surgiu a oportunidade de gravar o primeiro álbum com apenas 16 anos e quando, como já confessou, sabia apenas o Mi e o Lá?

As músicas que fiz nesse primeiro álbum são quase todas nas mesmas notas! [risos] Comecei a aprender a tocar e tinha o grupo Kandango, em Lisboa. Esse grupo dançava, tocava e cantava. E eu comecei a compor. Lembro-me que, nessa altura, dançávamos músicas americanas e um dia cruzei-me com o Júlio Isidro, que me disse que era melhor eu ser o Paulo Flores, mesmo que ninguém me conhecesse, do que ser o Michael Jackson do Campo Grande. Nunca me hei-de esquecer disto. Depois disso perguntei às minhas avós coisas sobre Angola e comecei a compor. Entretanto há um amigo, escritor, o Carlos Ferreira, que trabalhava na Rádio Nacional de Angola, que vem à nossa casa em Carnaxide e mostro-lhe as músicas. E ele começa a chorar. Depois disso consegui ir a Angola gravar com o Eduardo Paim. Gravámos o disco em cinco dias.

Tinha noção que estava a gravar um disco quando os miúdos da sua idade estavam a jogar à bola?

Há coisas de que nunca temos noção… Gravei com todo o amor e verdade, mas não sabia bem o que estava a fazer. É qualquer coisa que está dentro de mim. Tinha amigos que não acreditavam que era eu que fazia as músicas, achavam que era o meu pai. No segundo disco tenho uma música chamada ‘Porque Chora Piópió’ [criança], que dizia: ‘Porque choras piópió, se o mais velho está contente? Diz que Luanda está boa, está melhor do que Lisboa, diz que é mesmo independente. Porque choras piópió, se as promessas reinam no ar em Luanda, se o povo é que manda, se já passou a dipanda [liberdade], porque choras piópió’. E, no final da música, digo: ‘Chora mesmo piópió’. Se o povo é que manda era um slogan do MPLA e toda a gente dizia que aquilo ia ser proibido. E eu nem percebia porquê! Aquilo era o que eu sentia, mas só percebi a dimensão desta música quando já tinha 26 ou 27 anos. E fi-la com 17 anos.

Nunca sentiu que corria risco, por exemplo, de ser preso?

Nem pensava nisso. Não queria apontar o dedo a ninguém, apenas queria falar de um lugar que amava e para o qual queria o melhor. Claro que houve alturas mais complicadas, principalmente nas eleições. Normalmente não participo, mas sinto mais tensão.

Há pouco dizia que logo no primeiro álbum teve sucesso e que essa fase foi complicada.Já se habituou ao sucesso?

Tentei sempre ser uma pessoa normal. Custa-me muito ser figura pública. Claro que também tem coisas boas, nomeadamente a forma como as pessoas me tratam. Por exemplo: uma vez estava nas Palmeirinhas, com a minha mulher Irina e o Kiari, que na altura tinha dois anos, e vem um helicóptero enorme da Força Aérea. Passa por nós e dá a volta na nossa direcção. A Irina assustou-se e achou que nos iam fazer mal. Mas o piloto olhou para mim, fez uma continência e continuou.

Histórias como essa ficam para sempre na memória?

Sim e são tantas! Uma vez, numa discoteca no Lobito, dois senhores ofereceram-me uma garrafa de uísque e vieram dizer-me que a minha música lhes tinha salvo a vida. No tempo da guerra pararam num controlo da UNITA e estavam a ouvir o meu segundo disco. Por causa das músicas que eu cantava, muita gente achava que eu era da UNITA – independentemente de eu não ter nada a ver com nenhum dos partidos. Mas a tropa ouviu aquela música e disse: ‘Estes são dos nossos, podem passar’. Outra vez, um segurança que trabalha com um amigo meu contou-me que, quando foi tropa, ouviam o meu disco quando vinham da batalha e estavam a curar as feridas.

Já tinha alguns anos de carreira quando decidiu mudar de rumo e trocar a kizomba pelo semba, um género quase em extinção. Porquê?

Disseram-me que não devia gravar semba porque já ninguém ouvia esse género. Mas o facto de ter conhecido o Carlitos Vieira Dias – filho do Liceu, o pai do semba – e o Joãozinho Morgado – filho do Mestre Geraldo, o senhor da rebita –, que gravaram 90% da música de Angola nos anos 70, fez-me perceber que o semba é a música mais rica de Angola.

Justamente por isso, no final de 2014, inaugurou em Lisboa o Poema do Semba, um restaurante e sala de espectáculos e exposições que funciona como uma espécie de embaixada do semba?

Sim. Passava dias em casa, a tocar. E comecei a pensar que podia ter um sítio onde tocar para as pessoas e juntos irmos construindo a ideia do cancioneiro angolano, dos poetas e do semba… Quero que isto seja uma espécie de museu. E é muito prazeroso perceber que as pessoas se sentem muito bem aqui e se emocionam, angolanos e portugueses, alguns que nunca foram a Angola. Aquilo que via o meu pai fazer, agora faço aqui.

Lançou 14 álbuns ao longo dos seus 25 anos de carreira. Como é que consegue a inspiração para criar tão regularmente?

Agora vou entrar em estúdio outra vez! E também vou dar concertos na Polónia, Noruega, Canadá e EUA. A verdade é que tenho tantas músicas! Ainda no último disco deixei cerca de 25 músicas de fora, mais do que aquelas que entraram. Tenho tanta coisa para dizer! Estou sempre a compor, esse é o meu principal trabalho. Também faço músicas e letras para outros, às vezes produzo. Não posso passar sem música e criação. Às vezes saio de um show, e se for um show muito grande como o último em Luanda, chego a casa e não consigo dormir. Preciso de umas horas para relaxar. Nessa altura, pego no violão e toco. Em minha casa há sempre música. Se não sou eu é o meu filho ou a minha filha que canta e toca piano.

Como é que a sua timidez foi funcionando com o sexo oposto?

[risos] Sempre fui tímido, também com as miúdas. Muitos amores poderiam ter passado por mim se eu não fosse tão tímido. Quando gostava de alguém tinha grande dificuldade em aproximar-me. Lembro-me de uma colega a quem ofereci um postal que dizia ‘Na omnisciência de um amor…’. No dia a seguir cheguei à escola e ela estava tão contente a olhar para mim, mas eu nem consegui falar com ela. Deve ter achado que eu era maluco. Mas a verdade é que sempre tive relações muito longas. Apaixonei-me pela mãe do meu primeiro filho quando eu tinha 16 anos e estive com ela até aos 23. Dos 24 aos 30 estive com a mãe do meu segundo filho. E dos 30 até agora estou com a mãe dos meus outros dois filhos.

Foi pai pela primeira vez muito jovem, com 19 anos. O que mudou?

Só hoje é que percebo melhor. Acho que só ganhei a capacidade de ser pai muito tarde. Ou seja, com 19 anos fui pai, mas não fui. Não percebi a dimensão daquilo. Só aos 39 ou 40 anos é que percebi mesmo o que é que é ser pai. Mas claro que fui pai muito cedo. Mas gostávamos muito um do outro e aconteceu. Hoje o meu filho mais velho é DJ e já me deu um neto. Com 43 anos já sou avô.

O seu filho mais velho, como referiu, é DJ. Mas o seu rapaz mais novo, o Kiari, também dá sinais que querer vir a trabalhar com música…

Ele nasceu para ser músico. Com um ano e tal já juntava panelas para tocar. Hoje em dia tem 12 anos, toca viola, bateria, percussão, tenta fazer as suas músicas. Às vezes toca comigo. Já percebi que ele quer ser músico, mas já lhe expliquei que vai ter de estudar.

Ele subiu ao palco pela primeira vez com o Yuri da Cunha, não foi?

Foi um show que eu fiz no estádio. E ele estava sempre a pedir para entrar em palco e eu a dizer-lhe que não, que era um show a sério. Mas quando o Yuri entrou, ele pediu-lhe que o chamasse ao palco e o Yuri chamou. E ele tocou as congas e ainda foi dançar ao lado do Yuri. Tinha seis anos e 30 mil pessoas à frente.

Em 2013 lançou O País Que Nasceu Meu Pai, um álbum especial, já que coincidiu com a morte do seu pai…

Ia gravar um disco, estava já a fazer umas músicas, e o meu pai morre. O disco surge da morte dele. Quis prestar homenagem ao meu pai e a toda a geração dele. Foi a altura em que conheci as pessoas mais brilhantes de Angola, como o António Jacinto, o Rui Mingas, a Helena e o Fernando Teixeira, meus sogros na altura, pessoas que, como o meu pai, acreditaram bastante na liberdade para Angola. Muitos deles foram esquecidos e eu não queria que fossem porque foram eles que me passaram muitos dos valores que tenho hoje. Queria falar para essas pessoas.

Ficou muito por dizer entre si e o seu pai?

Acho que não, felizmente. No deve e haver da vida, o mais importante foi dito. Uma das últimas conversas que tive com o meu pai foi porque eu sentia que, às vezes, ele achava que os filhos esperavam mais dele ao nível de certas condições financeiras. E expliquei-lhe que, para nós, era muito mais importante ele ter sido sempre um homem de muito afecto. Sinto que essa conversa foi um alívio para ele. E foi importante para mim ter podido dizer-lhe isso. Porque ele a mim sempre me disse tudo. E acho que ele tinha muito orgulho em mim e nos meus sete irmãos.

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