O tempo é o que Camané quiser fazer dele

Quando começou a cantar, os pais e o avô de Camané trauteavam uns fados, mas em casa não havia nenhuma referência basilar para alimentar o desejo de um jovem que cedo percebeu a vontade em se tornar fadista. Porém, enquanto crescia e aprofundava esse desejo, o bisavô, José Júlio Paiva, tornou-se mote de conversa habitual.…

A oportunidade de o ouvir pela primeira vez aconteceu, contudo, há cerca de dois anos, depois de participar em Quem É Que Tu Pensas Que És?, programa da RTP que aprofundava a árvore genealógica de cada convidado para descobrir a história dos seus antepassados. Um dos citados pelo fadista foi, naturalmente, José Júlio Paiva e, uns tempos depois, foi com espanto que recebeu um telefonema de José Moças, coleccionador e investigador de música tradicional portuguesa, a dizer-lhe que tinha o vinil, datado de 1924. 

“Ele só soube de quem se tratava quando me viu na televisão”, conta Camané, lamentando que Moças não o tenha deixado ficar com a edição física. “Fez-me uma cópia e até tive algum medo em ouvi-la. Sabia que cantava bem por aquilo que o meu pai me dizia, mas a memória às vezes é traiçoeira”. Afinal, não havia nada a temer. “Cantava, de facto, muito bem, de uma forma antiga”. 

O achado é, então, celebrado no novo disco de Camané, Infinito Presente, nas lojas a partir desta segunda-feira, 4 de Maio. Aos dois fados que encontrou na voz do bisavô, acrescentou-lhe dois poemas – um do século XVII, de Frei António Chagas, e outro de Fernando Pessoa –, dando assim o tom tradicional do registo. Ao lado destes, há um inédito de Alain Oulman, um tema de Vitorino Salomé, um poema de David Mourão-Ferreira. E há também as palavras de Manuela de Freitas, “a pessoa que actualmente melhor escreve para fado”, e a produção de José Mário Branco. 

Esta parceria, diz Camané, só terminará se o músico e compositor “um dia, se fartar”. É pouco provável. Como o fadista diz, “há uma identificação e uma cumplicidade irrepetíveis” quando os dois se juntam. “Ninguém compreende melhor o meu fado”, reforça Camané, explicando que o processo de trabalho começa muito antes de se encontrarem em estúdio. 

Quando Camané decide avançar para um novo trabalho, José Mário Branco e Manuela de Freitas apresentam-lhe alguns temas que foram coleccionando. A esses, Camané acrescenta outras sugestões. Reunidas as canções – neste caso “mais de 70” –, cabe depois ao fadista reduzir a selecção e decidir quais vão entrar no álbum. “É por isso que os discos ficam enormes (este tem 16 faixas, mais uma extra na edição especial). Às vezes, não consigo escolher. Quero cantar tudo, mas também não lanço discos todos os anos…”. 

Infinito Presente demorou cinco anos a chegar e marca 20 de carreira discográfica. “Mas se contarmos desde que comecei a cantar profissionalmente já são 30”, diz. Ainda assim, o currículo não lhe traz arrogância. “Está tudo por fazer. Tenho sempre essa sensação e estou cada vez pior”, apressa-se a sublinhar. No meio das incertezas, já aprendeu a “ouvir a opinião” de terceiros, mas ainda não consegue evitar “as dores de rins” com que abandona sempre o estúdio. “É muito duro. Quando termino, na semana seguinte não posso fazer nada”. 

É por isso que Camané prefere o palco. Sempre preferiu. Este disco é, sobretudo, sobre o tempo. E Camané faz do tempo o que bem quiser, seja a cantar um fado tradicional, um musicado, um triste ou outro mais alegre. Mas é ao vivo que o fadista se sente totalmente dono da sua música, da sua interpretação e, lá está, do seu tempo. “Ao vivo, os fados ganham outra dimensão. Depois de cantados várias vezes, os temas vão melhorando. E há sempre a possibilidade de fazer emendas. De fazer e de descobrir coisas novas no que cantamos”.

alexandra.ho@sol.pt