As contas dos juízes e dos deputados…

Os media não gastaram muito tempo nem espaço com as conclusões a que chegou o Tribunal de Contas, depois de auditar,  pela primeira vez, as contas do Tribunal Constitucional. E, no entanto, estas deveriam ter merecido um outro tratamento pelo seu simbolismo .

A excepcionalidade dos privilégios de que gozam os 13 juízes do Tribunal Constitucional – que nunca incomodou os próprios, nem foi questionada pelo poder político -, poderia ter aconselhado uma maior cautela no elenco das  mordomias inerentes ao seu estatuto.

Afinal, lido o essencial do relatório dos auditores, percebe-se que no Palácio Ratton se têm assumido liberalidades de procedimento menos condizentes com o cenário de austeridade continuada a que o país tem estado sujeito. 

Os juízes do Constitucional, que são já beneficiários de um regime de reformas ímpar –  ao qual ascendem após 12 anos de serviço efectivo e qualquer que seja a sua idade -, acham-se ainda no direito de dispor de automóveis para uso pessoal, além de senhas de refeição e de outras minudências  por cada sessão em que participem.  

Esta pose  majestática, justificada com o enquadramento da representação institucional, não parece ter impressionado ninguém nem foi sujeita a qualquer escrutínio – excepto, agora, pelos   auditores  do Tribunal de Contas. 

O histórico recente do Tribunal Constitucional era já indiciador de que  convivia mal com as restrições austeritárias, adoptadas pelo Governo, para os servidores do Estado e pensionistas.  

À pala de uma autonomia administrativa e financeira, o TC  não terá cuidado de ajustar a casa às realidades de um país quase falido, nem os seus juízes se deram ao incómodo  de se interrogar acerca da bondade das suas regalias .  

De outro modo, os auditores do TdC não teriam concluído, por exemplo, que “a atribuição, desde 2000, de veículo para uso pessoal (com cartão de combustível e via verde, com limiares definidos) a todos e a cada um dos juízes conselheiros” não está prevista, “dado que só o presidente e a vice-presidente do TC têm direito a veículo oficial (…)”. De contrário, o “uso pessoal teria significativas implicações retributivas que (…) obrigariam à sua previsão no estatuto dos magistrados”.

Ao exercer o contraditório, sente-se que o actual presidente do Constitucional, Joaquim Sousa Ribeiro, não está confortável nos argumentos utilizados. Nas alegações, ao justificar  a afectação do veículo  “ao uso pessoal de cada juiz”,  defende o facto de ser conduzido pelo próprio,  “enquanto o quadro de pessoal do Tribunal não estiver dotado de um número de motoristas suficiente para a condução de cada uma dessas viaturas”.

Ou seja, em vez de emendar a mão, perante uma situação consumada (aparentemente sem suporte nas disposições vigentes), o presidente do TC  ainda coloca o tribunal numa posição  de favor, por 'poupar' o erário público à admissão de 11 motoristas. Um achado.

Bem se sabe que há países onde os titulares de cargos públicos se deslocam em transportes colectivos  ou de bicicleta, sem o menor constrangimento. 

É uma cultura bem diferente daquela que  vigora por cá, onde qualquer assessor ministerial se sente com  legitimidade  para se fazer transportar em viatura oficial. Por isso, a frota de carros do Estado tem inchado e o pessoal afecto também.

Nesta lógica, não admira, por isso,  que o presidente do TC tenha reagido com “verdadeiro desgosto”  às  “infundadas conclusões” dos auditores. 

Seria interessante, porém, que os guardiões da Constituição, ao menos  em tempo de 'vacas magras', dessem o exemplo de frugalidade. Não lhes ficava mal .

As 'ondas de choque' da auditoria ao Constitucional estenderam-se depressa a outros órgãos de soberania.

Subitamente, num sobressalto,  todos os partidos com assento no hemiciclo de São Bento aprovaram, por unanimidade,  uma lei inédita para subtrair as contas dos seus grupos parlamentares  ao controlo do Tribunal de Contas… 

O alarme surgiu em meados de Fevereiro, segundo revelou o Expresso, após uma notificação do TdC para que os grupos parlamentares facultassem os dados relativos às subvenções públicas, incluindo contas bancárias e números fiscais.

Num abrir e fechar de olhos, a nova lei foi redigida, discutida e   aprovada,  no meio de um invulgar consenso e  discrição, que mobilizou o espectro partidário da esquerda à direita. E bastou mês e meio para  o diploma chegar a Belém e ser promulgado. 

Pelos vistos, os deputados foram lestos a desviar a competência de fiscalização das finanças dos grupos parlamentares para o Tribunal Constitucional. Perdeu poder o Tribunal de Contas. Os deputados saberão porquê…