Crime, disse ela

Ao fim de 20 livros com Reginald Wexford como protagonista, Ruth Rendell explicou ao jornal britânico The Observer porque não se fartava do taciturno inspector e era, com imenso prazer, que escrevia novas aventuras para a personagem que criou em 1964: “Ele sou eu. A maneira como pensa, os seus princípios e ideias, e o…

Crime, disse ela

Além do eterno inspector, que a acompanhou durante 49 anos (o último policial da série Wexford foi lançado em 2013), Ruth Rendell assinou mais outros 40 romances e também editou com o pseudónimo Barbara Vine. O alter ego valeu-lhe, logo no primeiro volume, o Mystery Writers of America’s Edgar Allan Poe e, no segundo, o Crime Writers Association Golden Dagger. Mas os fãs de Wexford estranharam o mundo paralelo da autora. Os thrillers que criava como Barbara Vine eram muito mais negros do que as histórias do inspector, com as descrições minuciosas das obsessões e psicoses dos assassinos e violadores que elegia para protagonistas a tornarem estas intrigas sombrias. “Vine é mais séria, mais analítica. Obrigou-me a mais pesquisa”, disse ao The Observer, em 2013. 

Independentemente disso, todos os livros da série Wexford ou com o pseudónimo Vine tornaram-se bestsellers e valeram-lhe o cognome de ‘rainha do crime’, alcunha que odiava por considerar “sexista”. A par disso, Rendell também não concordava com outro comentário recorrente na imprensa britânica, que a catalogava inúmeras vezes como “uma grande romancista”. “Ninguém no seu bom senso me chamaria uma escritora de ‘primeira linha’. Mas não me importo porque dou o meu melhor e milhões de pessoas gostam dos meus livros”. 

Ruth Barbara Grasemann, o seu nome de baptismo, começou a escrever com regularidade no Chigwell Times, título de Essex onde trabalhou como jornalista. E algumas das reportagens tiveram mesmo contornos de policial. Um dos artigos que assinou foi sobre uma casa com reputação de ser assombrada. Por isso, Ruth inventou na notícia a presença do fantasma de uma idosa e foi processada pelo proprietário. Mais tarde, escreveu sobre o discurso de um orador num clube de ténis ao qual não assistiu, mas o senhor em causa tinha morrido com um ataque cardíaco durante a ocasião. Perante estes incidentes, demitiu-se, mas continuou ligada ao jornal através de Don Rendell, jornalista com quem se casou aos 20 anos. 

Anos mais tarde Don foi contratado pelo Daily Mail e a família instalou-se em Londres, com Ruth dedicada à casa, ao filho e à escrita, que na altura guardava só para si. Mas a mudança também marcou o regresso da escritora à capital, onde nasceu, em 1930, em South Woodford, um subúrbio a nordeste de Londres. Foi ali que cresceu, filha única de mãe sueca e pai britânico, ambos professores. Ruth não guardou, porém, boas memórias da infância, uma vez que a mãe foi diagnosticada com esclerose múltipla e a menina acabou por ser criada por uma governanta. Mais tarde, a escritora confessou que foi muito mais próxima da empregada do que da mãe. Para compensar, a relação com o pai era íntima e Ruth descrevia-o como “infinitamente paciente, amoroso e gentil”. Características que fez questão de transferir para Wexford.

Foi já depois dos 30 que conseguiu publicar a primeira obra. Depois de seis volumes rejeitados, assinou finalmente um contrato com uma pequena editora, pelo valor de 75 libras (pouco mais de cem euros), e lançou From Doon With Death. A estreia foi bem recebida pela crítica e permitiu-lhe poder negocial para renovar o contrato por uma quantia mais razoável. 

Ao longo de 50 anos de carreira, um dos elogios mais repetidos pela crítica era o seu talento para o suspense. E a própria tinha perfeita consciência dessa qualidade, como confirmou há dois anos ao Guardian. “Suspense é o meu truque. Acho que consigo fazer com que os leitores queiram passar páginas umas atrás das outras”. Outra característica recorrente nas suas obras é a tomada de posições fortes contra injustiças sociais e revelar um certo desencantamento em relação à natureza humana, uma vez que não acreditava que o mundo fosse “um sítio particularmente agradável”. “É, claro, para algumas pessoas. Mas é um sítio duro e não acho que dizê-lo seja cínico”, afirmou há alguns anos à Associated Press.

Estas convicções tornaram-na apoiante dos Trabalhistas, em 2007, quando estes estavam na oposição e a quem doou dez mil libras. A associação ao Partido valeu-lhe um lugar na Câmara dos Lordes, na qual teve assento e onde defendeu a legalização da eutanásia. A passagem pela política valeu-lhe ainda o título de baronesa.

Traduzida em mais de 20 idiomas, Ruth Rendell viu ainda alguns dos seus romances serem adaptados ao cinema: por Pedro Almodóvar (Em Carne Viva, adaptação de Live Flesh) e Claude Chabrol (A Cerimónia, que adaptou A Judgement in Stone). Em Portugal, estão editados mais de 20 romances e, este ano, deverá chegar o derradeiro livro escrito por Ruth Rendell. De acordo com a BBC, a autora deixou um romance inédito, Dark Corners, que será publicado em Inglaterra a título póstumo em Outubro. E não deverá demorar a marcar presença nos escaparates nacionais a tempo do Natal.

alexandra.ho@sol.pt