As roupas não distinguem uma pessoa distinta

De vez em quando desaparece e esqueço-me que existe. Como se nunca tivesse ali estado, à porta de uma pastelaria, sentada, suplicante, ansiosa de moedas. Lembrei-me dela por ter voltado a vê-la no lugar de sempre e se o escrevo é porque me olhou curiosa, expressão humana que me fez perguntar onde esteve tantos dias,…

Difíceis imagens. Todas as manhãs gasto os minutos do café a observar os outros, todos os que passam em volta. Gente muito diferente vestida com roupas distintivas da sua condição. É curioso: as roupas só não distinguem uma pessoa distinta. Apenas distinguem os que têm dinheiro dos que não o têm. São conceitos diferentes, podem coincidir ou não, mas quando divergem tornam-se ruído; o dinheiro somado à falta de distinção é uma conta de somar com um resultado deprimente. Há também os que não tendo dinheiro para mandar cantar um cego parecem sempre bem vestidos com o mais fino dos tecidos. É o mesmo com as asneiras, as mesmas palavras são ordinárias ou nascidas do mais requintado humor. A seda ou se tem ou não, nada a fazer.

Por isso, não nos deixemos enganar por roupas caras ou enredar com palavras. Cada uma tem um peso, mas cada peso depende de quem as pronuncia. E nisto das palavras há algumas que me irritam, confesso. Empreendedorismo. Inovação. Sustentabilidade. Eficiência. Governance. Palavras novas que envelhecem depressa. Nas universidades o sonho e a utopia foram substituídos pelo pragmatismo. E nas empresas os derrotados cedem os seus lugares aos que ganham sem risco. Parece estar correcto, é a lei da nova civilização. Mas não está correcto, na verdade está profundamente errado. Não existirá progresso sem estudantes que sonham (única maneira de inventarem mundos que ainda não existem) e pessoas que falham (porque não há verdadeira inovação nas empresas sem experimentação, sem risco e sem derrotas que sejam inteligentes). As palavras não querem dizer nada se não construirmos edifícios para elas, edifícios cobertos de tijolo, cimento, sonho e falha.

Está tudo encadeado. Ou pelo menos assim parece. Tenho nestas crónicas brincado com a vida como se esta fosse um puzzle de sentidos por compreender, convenci-me que é mesmo isso, um puzzle, um conjunto de heterónimos. A vida que penso é um poema de Fernando Pessoa, é a minha humilde e mais completa definição.

Mas quem era Fernando Pessoa antes de se deitar? Um heterónimo do heterónimo em que se tornou? O que pensava para lá das palavras que escreveu, a que lhe sabia o que bebia e comia, como se via a si próprio no espelho do seu primeiro quarto na Coelho da Rocha? Como amava na sua solidão, como desesperava no seu desespero, como existia o que em si não tinha explicação? Quem era Fernando Pessoa para Fernando Pessoa? O que suspirou antes do último suspiro, o que era sem palavras escritas, o que foi?

É enorme o mundo. Enorme de fronteiras, mares, pessoas, montanhas, cheiros. Também de bojadores e esperanças. Tanto para ver, sentir, tocar. Porém, o mundo fora de nós é vazio se estivermos ocos por dentro – é aí, nesse planeta privativo, que tudo o resto tem expressão ou perde o sentido. Podemos viajar, conhecer países e deles nada ficar para além de postais ilustrados. E podemos ficar mais completos. Tudo dependerá desse mundo invisível de que cada um é dono. Um mundo tão enorme como o outro. Ou maior, se tivermos imaginação.

Encontramos aí o amor e as outras vitórias de que precisamos. E as tácticas que inventamos como se fossem uma mistura alquímica. Uma amiga diz-me que nada é mais decisivo do que um primeiro olhar, uma primeira impressão. Diz-me que as coisas mais importantes são as que nascem de uma primeira vista fulminante. Muitos o juram mas disso não tenho a certeza. Porque em mim acontece o contrário, as pessoas decisivas, as que ficaram para lá dos humores, ausências ou silêncios, são as que sobreviveram à atracção de um olhar inicial. Os que me dizem mais construíram um mundo comigo após vários avisos, apareceram uma, duas, dez vezes e, num qualquer momento, estavam colados como se fizessem parte da minha sala de estar. Fazer entrar nessa divisão alguém que nos fulminou à primeira vista é arriscar escancarar a nossa intimidade e ficar com uma cicatriz que nenhum cirurgião poderá arrancar.

E amar, não o esqueçamos, é sermos o que o outro espera sem abdicarmos de nós. É termos a pele e a alma tatuada do que antes não existia sem necessidade de sacrificar o que já nos pertencia. Amar é isto e tudo o resto. É repousarmos mesmo quando o vento é forte e a chuva cortante. É chegarmos a casa quando somos abraçados. Uma casa sem chave, de portas abertas e com divisões infinitas. A nossa casa, o nosso amor.