A bica sai de cena

Há várias coisas que identificam um português no estrangeiro. Uma delas são as saudades da bica. Mal põe o pé em Badajoz o português consome-se com a zurrapa que lhe é servida sob a forma de ‘cafe solo’. E, no entanto, estamos na cauda da Europa no que à cultura do café diz respeito. Uma…

“Temos três mitos em relação ao café: achamos que bebemos o melhor café do mundo; que somos grandes consumidores e que sabemos imenso sobre café. Não podíamos estar mais enganados”, sustenta Sandra Azevedo, fundadora da Academia do Café e a única pessoa em Portugal certificada como formadora pela Speciality Coffee Association of Europe (SCAE), reconhecida como uma espécie de Cordon Bleu para os profissionais dos cafés e cujos diplomas abrem portas nas melhores casas de todo o mundo.

Sandra Azevedo, licenciada em Engenharia Alimentar, tem um percurso de 16 anos no mundo do café. Começou por acaso, quando foi trabalhar para a Heinz para a equipa de café como responsável de qualidade e teve “ que aprender e estudar”, naquilo que viria a ser um caminho sólido e inesperado. Em Dezembro de 2011 abriu a Academia do Café, em Lisboa. Em 2012 tornou-se a única portuguesa detentora da certificação internacional outorgada pela SCAE. E é das poucas pessoas na Europa, diz, a dar formação  nos seis módulos da SCAE: Introdução ao Café; Café Verde; Torra; Análise Sensorial do Café; Barista; e, também Brewing, ou seja, formação na técnica de extrair café que não através das máquinas de expresso (o brewing também pode ser considerado slow coffee e inclui a extracção a frio, agora muito na moda).

À sede da Academia do Café chegam sobretudo estrangeiros, uma prova de que o sector do café está a tornar-se um capítulo cada vez maior no mundo da restauração e hotelaria. “90% dos nossos alunos são estrangeiros que vêm da China, da Coreia do Sul, da Islândia. Aqui, além dos cursos, podem desfrutar ao mesmo tempo de um bom clima e da gastronomia”. Sandra Azevedo calcula em 300 o número de alunos que passaram pela escola nestes três anos de actividade. “Muitos regressam. Um da Coreia do Sul já veio três vezes e agora tenho uma formanda russa”. A ausência de alunos nacionais, num país que se diz de amantes de café, deve-se ao facto de “os portugueses não encararem a formação como um investimento e de em Portugal a profissão não ser reconhecida. Quem quiser contratar um barista em Portugal irá ter muitas dificuldades”.

Que imagem formará o cérebro de um português ao ouvir o termo barista? David Coelho, que detém o título de Barista do Ano 2014, conquistado na primeira e única vez em que o campeonato se realizou em Portugal, recorda que “há pessoas que acham que é uma tradução de barman ou o tipo que atira bebidas ao ar”, uma espécie de malabarista atrás do balcão. Mas barista é o especialista em café. “Está para o café como o enólogo para o vinho. Um barista deve saber fazer um bom expresso, mas também saber as origens, as quintas, as variedades da planta e os aromas, conhecer os blends , ou seja, as misturas. E além de saber fazer de forma perfeita as bebidas clássicas de café, como o capuccino, o affogato, a meia de leite, tem que saber criar”.

A terceira vaga do café

Para Sandra Azevedo – que participou no campeonato de Barista do Ano como jurada certificada pela SCAE – Portugal estará uma ou duas décadas atrás do que se passa lá fora, onde se vive a terceira vaga do café, com os chamados 'cafés de especialidade' a ganhar terreno sobre o grande comércio massificado e a gerar um culto que já rende milhões.

Os requisitos para que um café seja considerado de especialidade (e não o café comercial, mais massificado) são que tenha sido torrado há menos de sete dias, seja exclusivamente de origens (e não blends, que são muitas vezes misturas de grãos de várias origens onde há tanto a variedade arábica como a robusta), de preferência 100% composto por grãos de arábica, moído correctamente e imediatamente antes de ser servido. Além disso, o barista que o prepara tem que ter uma boa técnica e ainda saber todas as características do que está a servir. “É como o vinho. Já não nos passa pela cabeça consumir um vinho sem sabermos a origem, as castas e servido de qualquer maneira”. Para Sandra Azevedo, “a dignificação que o vinho sofreu há uns anos ainda não se deu no café”. A maneira displicente, de Norte a Sul, como hoje se trata o café só tem correspondência na forma como nas tascas se punha sobre a mesa o jarro com o vinho tirado do garrafão. O café que se bebe 'na rua' é quase todo “de qualidade muito abaixo do minimamente aceitável”.

E os sítios na capital onde se pode tomar um café de qualidade são, considera Sandra Azevedo, muito poucos. Haverá duas ou três casas de café artesanal (são conhecidos o Grémio, a Copenhagen Coffee Lab e a loja Corallo), onde há lotes de qualidade e que também privilegiam formas de extracção alternativas ao café expresso. Mas, diz a especialista, é fundamental para um verdadeiro apreciador que haja uma máquina de torra no local, uma vez que o consumo ideal deve ser feito entre 24 horas e sete dias após o café verde ser transformado nos grãos castanhos que conhecemos. A Academia do Café, na sua opinião, é actualmente o único sítio que conhece em Lisboa onde é servido café de especialidade. O expresso custa 1 euro e é servido com todos os matadores. A fundadora acredita, no entanto, que os consumidores estão a ficar mais interessados e mais exigentes. E poderá ser sob a pressão do consumo que se fará a revolução esperada. A Nespresso teve uma grande responsabilidade nisto. “Despertou a curiosidade ao apresentar cafés de origens e aromas diferentes e desenvolver um culto internacional. As cápsulas são uma maneira de fazer café com a moagem e as porções certas. E a partir daí as pessoas interessam-se por explorar o mundo do café”.

Stanislav Rotar prepara-se para abrir uma casa inteiramente dedicada ao café de especialidade em Lisboa, na Rua das Portas de Santo Antão, a poucos passos do Coliseu. Até chegar aqui a vida deste russo que veio aos dez anos para Lisboa deu uma grande volta, mas de uma maneira que para ele faz todo o sentido. No Verão trabalhava contrariado no restaurante dos pais em Cascais. Acabado o 12.º ano – “e porque já tinha conhecido tudo o que havia para conhecer” – decidiu ir estudar para fora. Fez Gestão em Barcelona e começou a trabalhar para uma empresa alemã de consultoria.

Acabado o curso, a empresa apresentou-lhe uma proposta de progressão de carreira na sede em Nuremberga. Foi aí que descobriu o culto do café. “Abriu ao pé do escritório uma cafetaria muito interessante e foi como se tivesse visto a Nossa Senhora de Fátima – a minha vida mudou. O que se bebia lá não tinha nada a ver com o nosso café, que dizem ser o melhor do mundo”. Cansado do ambiente “engravatado e snob” da consultora, Stanislav era atraído, como num conto infantil, pelos aromas da Machhörndl Rösterei, onde os baristas torravam os melhores cafés, e pelo ambiente descontraído mas “muito profissional e rigoroso”. Mandou mails com o seu currículo a oferecer-se para estágio gratuito, mas não recebia resposta. Há dois anos voltou para Portugal e abriu um dos restaurantes russos mais conhecido da capital, o Stanislav Avenida, mas não esqueceu a sua ambição.

Conseguiu arrendar o rés-do-chão de um prédio renovado numa zona de confluência turística, fez uma decoração personalizada com as suas habilidades de bricolage e a ajuda do pai e, quando já tinha chegado a máquina Probat, o ex líbris da Fábrica Coffee Roasters, contactou os “rapazes da coffee shop na Alemanha a pedir para virem cá a Lisboa darem uma formação, sobretudo na torra, que é bastante complexa e tem que ficar perfeita”. A máquina principal, considerada uma das melhores do seu género – e que permitirá preparar exactamente 5 kg de café de cada vez – representou um investimento de 30 mil euros. Era a prova definitiva que “não estava a imaginar abrir uma coffee shop, mas que o projecto já estava preparado para abrir”.

A Fábrica Coffee Roasters

Depois de ter o melhor equipamento – comprou a Marzocco, a primeira marca a produzir máquinas de expresso e ainda hoje feita à mão em Florença – precisava também de se rodear dos melhores profissionais. Num país onde praticamente não há baristas, encontrou no Google o nome de David Coelho e convidou-o para o projecto. “O David vai ter um papel importantíssimo de formação, porque além do conhecimento ,ele tem uma ética de trabalho espectacular. Queremos servir o melhor café de Lisboa e a equipa que vai cá estar tem que ser muito bem treinada para que todos façam o mesmo capuccino perfeito”, diz Stanislav, sonhando com o momento em que o cheiro da torra da sua Probat vai chegar à Avenida da Liberdade e arrastar clientes. Por enquanto, a equipa está ainda a preparar-se para o grande dia em que tudo esteja preparado para abrir.

O passo seguinte será trabalhar com hotéis em congressos e eventos, e vender em lojas gourmet e nos melhores supermercados o café torrado na Fábrica. Na Fábrica Coffee Roasters será também possível comprar equipamentos, como a cafeteira da Hario ou a Chemex (a icónica peça desenhada nos EUA em 1941), mas também café recém-torrado (com prazo de validade de dois meses) para moer em casa.

A bica honesta é possível

Na Panicoelho, a pastelaria de família em Rio de Mouro, na periferia da linha de Sintra, David Coelho esmera-se a tirar a bica perfeita, moendo o café do lote Diamante, da Delta (o topo de gama da principal marca de cafés portugueses), antes de o colocar no porta-filtros e calcar manualmente com um prensador. De cada vez que usa o porta-filtros limpa-o cuidadosamente para não ficarem borras para a operação seguinte. A bica sai com um creme uniforme e, sendo de um lote com grande percentagem de arábica (mais aromático e menos amargo), não necessita de açúcar. Os capuccinos e as meias de leite são ornamentados com o desenho de uma espiga, o que demonstra a perícia e o rigor do barista que o verteu na chávena. É invulgar ver este cuidado na capital. Os clientes da pastelaria de Rio de Mouro parecem tomar isto como um dado adquirido.

David demonstra que é possível, mesmo sem os luxos do café de especialidade, tirar bicas de forma muito honesta. A qualidade e afinação das máquinas, para não queimar o café, e a limpeza dos equipamentos são essenciais. A Fábrica, projecto a que está associado, encontra-se um nível acima. E muito mais acima ainda, estão os campeonatos internacionais de baristas. Em 2014, depois de ter vencido a prova promovida pela Associação Industrial e Comercial do Café (AICC) – que procura desenvolver a cultura do café e um novo sector profissional – David Coelho deslocou-se a Rimini, em Itália. Este ano, o concurso foi cancelado pouco antes da data marcada e por isso David não pode ganhar. Também não foi a Seattle, palco do World Barista Championship e onde, diz, se viram coisas incríveis, ao nível que estamos habituados na alta cozinha. Há três anos, conta David, um australiano, com o apoio de um produtor, controlou a alimentação das vacas “para obter um leite mais gorduroso e doce que permite um capuccino fabuloso”. Os campeonatos são um estímulo que alimenta a inovação, a tecnologia e a indústria. O melhor barista português prepara-se ao longo de seis meses, o que lhe permite dar “um salto no conhecimento”.

David Coelho licenciou-se em Recursos Humanos e tirou em 2007 um curso de barista nos Cafés Delta, em Campo Maior, procurando crescer na suas competências. Com um amigo chefe de cozinha que trabalhou com José Avillez e na Fortaleza do Guincho, aprendeu “técnicas de alta cozinha, coisas como esferificações”, o que lhe permitiu brilhar nos campeonatos. Com a Delta, que tinha uma associação com o Forum Cafe, foi várias vezes a Espanha participar em provas e cruzou-se com Victor Bolea, o grande herói barista de Espanha, um Adrià dos cafés. Em 2014 surgiu a prova da AICC, já certificada pela SCAE e David arrecadou o título num concurso onde havia apenas 16 candidatos.

Este ano, a prova portuguesa será, segundo a secretária-geral da AICC, Claudia Pimentel, entre 21 e 22 de Novembro na Feira Portugal Agro, “um local privilegiado para eventos dirigidos ao público em geral e ao sector agroalimentar”. Existe a noção de que o mercado do café em Portugal tem muito por onde crescer, tanto em qualidade como em quantidade. Com um consumo de café per capita de 4,7 kg por ano (segundo dados de 2012 fornecidos pela European Coffee Association) estamos muito abaixo dos nórdicos, cuja notoriedade como zona de culto do café tem vindo a crescer. Mas dados mundiais do Euromonitor para 2013, que têm sido citados por revistas internacionais, colocam-nos ainda mais abaixo: 2,6 kg por ano (ver infografia).

A falta que faz a cerimónia do café

Fátima Moura, investigadora e autora de livros sobre gastronomia e do blogue Conversas à Mesa, publicou recentemente, com a chancela dos CTT, Conversas de Café, onde investiga a nossa longa história ligada à produção e à torrefacção de café nas antigas colónias por inúmeras empresas portuguesas. Foi um passado intenso e glorioso.

“Quis fazer o livro também para honrar o Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC). A todos os congressos a que ia falava-se do CIFC, dos seus investigadores e de como o professor Branquinho de Oliveira teve um papel fundamental na investigação e com isso salvou várias plantações no mundo inteiro”, explica a autora. O CIFC, criado em 1955, teve uma acção determinante ao longo do século XX para proteger e salvar as plantações, criando novas variedades resistentes aos fungos. No livro destacam-se também as famílias proprietárias de grandes roças no Brasil, em Angola e São Tomé e Príncipe. E ainda o papel fundamental da Delta, a grande indústria da torrefacção portuguesa que Rui Nabeiro desenvolveu em Campo Maior, numa zona que nos anos 30 foi de intenso contrabando com Espanha. Além disso, o livro explica os vários métodos e utensílios usados na preparação de café.

Fátima Moura visitou recentemente o Texas e recorda que na cadeia Crave Cupcakes, dedicada aos enjoativos bolos, se serve café de forma requintada com cafeteiras em cobre. É também nos Estados Unidos que uma figura como Todd Carmichael, dono de uma das mais conhecidas lojas de café, a La Colombe, e autor do programa de televisão On Dangerous Ground, que filma as suas aventuras à procura das quintas onde se produz o melhor café do mundo, foi considerado o Americano do Ano pela Esquire.

Portugal, que se diz país herdeiro de uma forte cultura de café, e foi a sede de um império com países grandes produtores, estagnou. “É muito importante incentivarmos o aparecimento de baristas e sermos exigentes. É essencial que nos bons restaurantes haja uma carta de cafés e que se acabe as refeições com qualidade”, diz.

No evento Peixe em Lisboa, que decorreu no Páteo da Galé, a Nespresso organizou um workshop com Miguel Laffan, chefe com uma estrela Michelin do restaurante L'and Vineyards, no Alentejo. Miguel juntou um terço de uma chávena de café feito com uma cápsula de Origin Brasil da gama profissional ao seu prato de vieiras caramelizadas com puré de alcachofra de Jerusalém e um ristretto origin India para o risotto com foie gras e peito de pombo. Incorporar o café na gastronomia e servi-lo com a mesma cerimónia com que se servem os vinhos, com uma carta, é algo que está no horizonte.

Na verdade, essa cerimónia até faz parte do nosso passado. António Lemos, um dos três sócios proprietários da Casa Pereira, na Rua Garrett, bebe apenas café de balão feito à noite no descanso do lar para saborear sozinho. Começou a trabalhar em 1945, com 18 anos, na casa a que a partir de 1969 passaria a fechar a porta e entrar como sócio. A vizinha loja da Nespresso e os supermercados roubaram alguma clientela do café que manda torrar na Torrefação Negrita, na Rua dos Anjos, e que vende avulso, com grãos originários do Uganda, Etiópia, Brasil ou Timor. “Não é um negócio fabuloso, mas vai andando”. Beneficia do circuito de turistas do Chiado, que entram e se não compram café compram cafeteiras ou as máquinas que tem expostas. Algumas delas até voltaram a estar na moda.

António Lemos da Casa Pereira

De comida de cabras a moda europeia

O café faz bem

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