Uma questão de fé

Há cerca de mês e meio passei à porta da prisão de Évora onde está José Sócrates. Era um domingo e não se via ninguém. O conjunto prisional forma um extenso rectângulo limitado por um muro branco, não muito alto, e situa-se num bairro periférico incaracterístico. Pendurado nas letras metálicas onde se lia ‘Estabelecimento Prisional…

O que mais espanta na extraordinária história de José Sócrates – o primeiro chefe do Governo em toda a História de Portugal a ser detido por suspeitas de corrupção no exercício do cargo – é a quantidade de pessoas que continuam a acreditar na sua inocência.

Num restaurante popular, um casal de meia-idade sentado atrás de mim falava há dias do caso. Dizia o homem à mulher sentada na sua frente: “Ele não se vai calar! Só o calam se o matarem…”. Respondia a mulher: “E se calhar matam mesmo. Deixam passar as eleições e depois matam-no”. Não percebi a relação entre as eleições e a 'execução', mas alguma haveria na cabeça da senhora.

Quando Cavaco Silva disse que a reforma não lhe chegava para pagar as despesas, caiu-lhe o país inteiro em cima. Os portugueses indignaram-se: como podia Cavaco dizer uma coisa dessas quando havia famílias a viver com o ordenado mínimo? Parecia impossível um Presidente da República falar nesses termos.

Ora, Sócrates gastava cinco ou dez vezes mais do que Cavaco Silva para viver a vida que levava. E não escondia as despesas: vestia fatos Armani, comia nos melhores restaurantes e organizava almoços e jantares com convidados, tinha uma casa em Paris e outra em Lisboa, viajava sempre em classe Executiva, passava férias em resorts  e hotéis de luxo no estrangeiro – de Aspen a Formentera -, e fazia extravagâncias como ir à inauguração do Mundial de futebol.

Como entender que Cavaco, que sempre fez uma vida austera, sem qualquer ostentação, tenha sido tão atacado – e Sócrates tenha ainda hoje tanta gente pronta a defendê-lo? Como é que os portugueses, por regra tão invejosos, não se indignam com a vida de luxo que Sócrates levava? Como é que pessoas modestas que vivem com imensos sacrifícios se dispõem a pôr as mãos no fogo pelo antigo governante? Como é que não estranham as despesas que Sócrates fazia em função do que ganhava? Como é que os socialistas e a esquerda em geral não mostram ainda hoje qualquer incómodo perante as manifestações de novo-riquismo em que o ex-primeiro-ministro era pródigo?

Os advogados de José Sócrates explicaram recentemente que o seu constituinte pagava todas as despesas em dinheiro porque não tinha confiança no sistema bancário. Certamente foi Sócrates quem os mandou dizê-lo, pois ninguém no seu perfeito juízo dá uma 'explicação' destas. Toda a gente sabe que só paga as contas em dinheiro vivo, sem recorrer a cheques ou transferências bancárias, quem quer lavar dinheiro ou está na lista negra da banca. Ou, então, tem alguma coisa a esconder… 

Os advogados do ex-primeiro-ministro devem ter-se sentido envergonhados a fazer aquele papel.

Há uns tempos fui julgado em Coimbra num processo relacionado com o SOL, em que o queixoso era o presidente da Académica, José Eduardo Simões. Quando chegou o momento de este ser ouvido pelo tribunal, disse, entre outras coisas, que lhe tinham roubado do carro, estacionado perto de casa, uns larguíssimos milhares de euros. Questionado pela juíza sobre o motivo de trazer tanto dinheiro no carro, o homem respondeu que se destinava a pagar os ordenados dos jogadores de futebol do clube. A juíza surpreendeu-se:

– Mas o clube paga aos jogadores em dinheiro? Por que não o faz em cheques ou por transferência bancária?

O homem gaguejou, disse que sempre o fizera assim – e a juíza tornou claro que achava a explicação inverosímil, descredibilizando o queixoso em pleno tribunal. E ele acabaria por perder mesmo o processo.

Ora, a 'explicação' dos advogados de Sócrates, dizendo que este só usava dinheiro porque não confiava na banca, é pior do que a outra – e os advogados sabem-no.

Mas o que é mesmo estranho é as pessoas aceitarem como normal a vida que Sócrates levava e continuarem a acreditar na sua inocência. Fazerem romarias a Évora e vigílias nocturnas. E porem cravos vermelhos à porta da prisão, como se ele fosse um símbolo da liberdade mandado prender por um governo despótico.

Essas pessoas não têm olhos nem ouvidos? Não leram as notícias dos jornais? Não viram os vários acórdãos já produzidos por vários juízes que confirmaram a prisão preventiva e os fortes indícios da prática dos crimes de que José Sócrates é suspeito?

E não viam que muitos dos grandes  amigos e aliados de Sócrates lá fora eram indivíduos pouco recomendáveis, como Hugo Chávez, Kadhafi ou mesmo Lula da Silva? E, cá dentro, relacionava-se com Armando Vara, José Penedos, António Morais, Rui Pedro Soares, etc. Isto não dizia nada às pessoas?

E como entender as relações cúmplices com Ricardo Salgado? Para já não falar dos negócios que o primo de Sócrates tinha em Angola com o Grupo Espírito Santo, recentemente noticiados pelo SOL, com verbas a irem parar à conta na Suíça que alimentava os generosos gastos do ex-primeiro-ministro.

Bastava olhar para os aliados de José Sócrates lá fora, para os seus amigos cá dentro, para a forma como se vestia, para a vida que levava, para não ter grandes ilusões a seu respeito. Não era preciso consultar o processo Freeport, nem o Tagusparque, nem o Face Oculta, nem nada. Nem era preciso saber do amigo Carlos Santos Silva que lhe 'emprestava' dinheiro.

Se Sócrates vivesse em Massamá, passasse férias na Manta Rota e viajasse em económica, ainda se podia perceber a convicção da sua inocência. Mas assim, só pode ser mesmo uma questão de fé. 

jas@sol.pt