Não é verdade que os homens não compreendem as mulheres

Na claustrofobia de uma prisão, ou de uma vida, a maior parte do que se sente não pode ser descrito em palavras – quando se está preso, em qualquer das suas formas, o código de sofrimento não tem vogais ou consoantes. Não temos uma chave a que possamos dar duas voltas quando algo de nós…

Nunca estive preso dessa maneira. Mas gosto de me colocar na pele dos outros, de pensar as palavras e o que nos faz próximos ou distantes. O Ódio não está próximo do Amor, mas são o que temos de mais absoluto, bens preciosos, gasolina que nos faz maiores. Para não perder essa centelha vital escrevi 'Odeio Odiar' num caderno mental. Terrível pensamento mascarado de virtude, pois o Ódio é tão totalitário como a Soberba; um militante do partido de defesa dos animais odeia quem não é como ele próprio, ninguém em concreto, mas o colectivo demencial, o pecaminoso ser humano, frio e metódico na sua destruição. É como eu. Odeio odiar, logo odeio quem odeia, um turbilhão de vísceras e maus pensamentos. Um dia resolverei o dilema; antes terei de acabar com o vício de visitar quem não gosto – detesto fazê-lo, mas continuo a bater-lhes à porta por me ser penosa a ideia de o deixar de fazer. Não é fácil viver. E por aqui não há socorro possível. Por aqui o ódio não é ódio, é desconforto. E o amor ou amizade não são bem isso, são apenas uma memória.

Alguns amores são amores para sempre, mesmo que não passem de uma memória longínqua. Difícil encontrar pontes de entendimento quando nasce a dúvida, muito difícil. A eterna questão das relações, dos homens e das mulheres e de todas as variantes do género humano. Não é verdade que os homens não compreendam as mulheres. Só não as entendem a partir do momento em que na cabeça delas nasce a desconfiança. Nesse clique, quase sempre inevitável, cada um passa a estar por sua conta. Eles tentam sobreviver o melhor possível ao que não compreendem. Elas são imparáveis em jogos mentais onde, tantas e tantas vezes, os sins são nãos e as lágrimas não são tão reveladoras como parecem. A desconfiança é matéria inflamável e uma separação de águas. Nada fica igual nas margens de um rio que se julgava perfeito.

A dúvida é um motor que nos engripa. Não só as relações, não só a nossa vida profissional, tudo o resto que nos faz ser estes que aqui estamos. O envelope que chega do hospital, a tentação de não o abrir, de ficar como está. Uma análise, um exame por fazer, o check-up adiado, deixar para amanhã, para o ano, para quando não existir escapatória. Fugimos das más notícias, fechamos os olhos, selamos os ouvidos, ganhamos tempo por tanto esperarmos não o perder mais tarde. Precisamos de paliativos sabendo que um dia a carta dirá o que tem a dizer, mesmo nunca tendo sido aberta.

Mas as dúvidas não são apenas más, há as que nos fazem bem, que nos fazem mais completos. Gosto de pessoas que vivem no passado por isso mesmo, são-me essenciais. Não pela quantidade de dúvidas que me resolvem, mas pela quantidade de dúvidas de que passo a ter conhecimento. Gosto da dúvida, deste tipo de dúvidas. Tanto como detesto as outras de que lhe falei antes. E gosto da tranquilidade de partilhar o espaço com quem fechou a porta ao presente e ao futuro. Estão mortas no que em mim é vida e vivas no que em mim está adormecido. Gosto dos mais velhos pela sua sabedoria; não por saberem mais sobre o que me interessa, sem dúvida por saberem tudo sobre o que um dia me interessará.

É tudo uma questão de perspectiva. De nos colocarmos na pele dos outros, de anteciparmos tempos, dificuldades e boas vitórias. Não preciso de viver o tempo que espero viver para saber que um pai muito, muito velho nunca lidará bem com a velhice do seu próprio filho. Não deve ser fácil ver o seu bebé em curva descendente, a andar mais devagar, a perder o fôlego e com achaques da idade. Não por dele não gostar, mas por tanto gostar, prefere voltar-se para os netos e bisnetos que são os filhos no estado em que sempre deveriam estar. Jovens, feitos de futuro e não de passado. Um pai muito velho vê os filhos como se já tivesse partido e fosse um fantasma que paira para saber se está tudo bem.

E já que lhe falo de assombrações, posso recomendar-lhe uma? Um lugar que nos obriga ao silêncio e a atenção redobrada. Na Igreja de São Domingos, no Rossio lisboeta, não são tanto os fantasmas que me inquietam, deixo-os vaguear sem neles me concentrar – o que me arrepia é o peso de um tempo que se acumulou no mesmo lugar, o peso de um horror tão inominável que obrigou cada segundo a condensar-se sem fuga possível. Quando entro em São Domingos, é como se ouvisse o grito de milhares de homens, mulheres, crianças. Milhares de queimados, violados, esquartejados. Um tempo que não passa, 500 anos concentrados entre o Santíssimo e a porta de saída. Uma assombração. Já a viu? Como construir um túnel que escoe o tempo como um ralo de cozinha?