Solidários até na reforma

Ernesto Rebelo não tem dúvidas: “Se não fosse o Banco Alimentar, eu e a Adelaide já tínhamos morrido”. Aos 79 anos, os dois idosos contam com quase 20 de voluntariado no armazém do Banco Alimentar contra a Fome, em Alcântara, onde diariamente ajudam a distribuir toneladas de alimentos que seguem para as famílias mais carenciadas.…

Foi ao fim de apenas 15 dias de reforma que Ernesto entrou em pânico. “Estava habituado a sair todos os dias para o trabalho, a almoçar com os colegas. Isso começou-me a faltar assim que deixei o banco”, conta o ex-bancário, junto aos caixotes da fruta, minutos antes de entrar ao serviço para mais uma jornada de trabalho. “Percebi que estar parado não era vida para mim e vim à procura de uma ocupação que preenchesse o vazio que sentia”.

Ouviu falar do Banco na televisão, quando este ainda dava os primeiros passos na assistência aos mais pobres em Lisboa – “não havia a miséria que há hoje”. Não hesitou em substituir o outro banco por este: em vez de gerir dinheiro numa agência bancária, passou a organizar alimentos por boxes e a carregar paletes de arroz, massa ou feijão.

A rotina diária mantém-se hoje, tantos anos depois. Ernesto sai de casa às 8h30, apanha o comboio e regressa às 19h00. “É um dia normal de trabalho. E passo cá 80% dos dias do ano”, afirma. A colaboração neste projecto de combate à fome estende-se à sua paróquia, em Monte Abraão, onde há distribuição às famílias dos alimentos que chegam do Banco Alimentar. E também a sua mulher tem uma rotina activa, embora mais ligada à Igreja e à assistência aos doentes. “Somos perfeitamente autónomos. Ao fim de semana cuidamos da casa e saímos para passear”. E os amigos? “Os amigos andam por aí, alguns já morreram. Mas não sabem o que é acordar e ter um bom projecto para o dia”.

Ajudar os outros para se sentir viva

Maria Adelaide Borges de Sousa sabe bem o que é isto de “ter uma missão que nos faz sentir vivos”. Bastaram-lhe seis meses em casa para fazer tudo o que tinha programado para a reforma, depois de uma vida de trabalho num escritório e de ter criado duas filhas e ajudado a cuidar do neto. Depois arregaçou as mangas e foi para o Banco Alimentar “fazer o que era preciso”: arrumar, fazer boxes com alimentos, até varrer o chão. Coisa que os “mais novos, ainda hoje, estão pouco disponíveis para fazer”, sublinha. Actualmente vem ao Banco três vezes por semana e é responsável pela distribuição dos alimentos frescos (frutas, legumes, iogurtes). “Quando não estou aqui, estou em casa, a arrumar, a ler, ou a engomar a roupa da minha filha”.

Viúva há 27 anos, vive sozinha e diz não ter uma vida social activa. “Há quem me pergunte por que não vou passear para o Jardim da Estrela. Mas o que vou lá fazer, olhar para as árvores?”. Frequentar um centro de convívio também está completamente fora de hipótese. “No fundo, aqui convivo com centenas de pessoas. Mas fora do Banco sou um bocado bicho-do-mato”, confessa. Adelaide considera-se uma excepção entre as pessoas da sua idade. “Tenho saúde. Embora a cabeça já me vá falhando, aqui sou outra pessoa”. Considera-se uma pessoa com sorte: “Muitas amigas minhas estão doentes ou até em lares”.

Voluntários portugueses ainda são uma percentagem pequena

Ernesto e Adelaide encaixam bem no perfil de voluntário traçado pelo Instituto Nacional de Estatística em 2012, que concluiu que 7,3% dos portugueses com mais de 65 anos faziam voluntariado, a maioria na área social. No total, o INE apurou que 11,5% da população portuguesa fazia trabalho voluntário, uma taxa bastante inferior à de outros países europeus, como a Holanda, onde essa percentagem está acima dos 57%.

Segundo Isabel Jonet, presidente da instituição, no Banco Alimentar os séniores estão em maioria entre os 650 voluntários assíduos. São 70% e, dentro deste grupo de idosos, metade está acima dos 75 anos. Nas recolhas que o Banco Alimentar faz duas vezes por ano nos supermercados, normalmente 30% do total dos voluntários que participam nestas acções, ou seja, mais de 40 mil, são idosos.

Não há dados actualizados sobre o número de idosos voluntários mas Isabel Jonet acredita que rondem os 70% do total. O Conselho Nacional de Promoção do Voluntariado, organismo que ajudou a dinamizar mais de 200 bancos locais de voluntariado em todo o país, tem apostado na promoção do voluntariado como forma de envelhecimento activo. Normalmente, o voluntariado na terceira idade acontece em pessoas que já o faziam antes. “Quando se reformam, no caso dos homens, ou quando os filhos estão crescidos, no caso das mulheres, passam a ter mais disponibilidade”.

rita.carvalho@sol.pt