Da, para, com e pela violência

«Quando os media nos bombardeiam com as ‘crises humanitárias’ que parecem surgir constantemente mundo fora, deveríamos ter sempre presente que uma crise concreta só irrompe na visibilidade dos media enquanto resultado de uma conjunção complexa de factores» in Zizék, Slavoj, Violência, Relógio  d’Água editores, Lisboa, Junho de 2009

As duas últimas semanas ficaram marcadas por três notícias de violência e brutalidade que deixaram o país de queixo pendurado. Falo das agressões já cediças entretanto virais da Figueira da Foz, do homicídio do adolescente de Salvaterra de Magos e da agressão do agente da PSP ao homem que foi à bola com os filhos ver o Benfica sagrar-se campeão nacional, em Guimarães.

Regressei a este título de Zizék quando vi as imagens da agressão de Guimarães. 

Quase nunca vejo vídeos deste tipo de coisas, porque dispenso largamente o sensacionalismo de casos de violência, mas este loop de 30 segundos estava no mural de alguém no meu Facebook e foi inevitável, porque aquilo tem auto-play. Nunca olho para gente à pancada. Nem nos filmes. Neste vídeo fiz o mesmo. Os meus olhos acompanharam a criança que se vê a esbracejar e que depois é levada por mais um agente da PSP. O mesmo sucedeu com as agressões da Figueira da Foz, cujo vídeo não vi porque me parece insano ver semelhante coisa. Também só dei atenção à notícia do homicídio de Salvaterra de Magos quando não tive hipótese de o evitar.

Porque a violência faz parte do nosso quotidiano, não preciso de tomar conhecimento de mais nenhum outro tipo de violência, muito menos da explícita, caso contrário torna-se mesmo impossível querer continuar a viver em sociedade. Ou neste caso, em Portugal.

Estes três acontecimentos recentes vêm sublinhar que algo de muito grave está, de facto, a acontecer no país. 

Não sei se será apenas uma crise de valores; temo que o problema seja maior e que estes sejam apenas indicadores de que não é um problema isolado ou geracional, ou por causa das consolas: a violência em que vivemos todos os dias trespassa classes, géneros ou estatutos. É tão transversal como a necessidade de beber água.

Hoje, segunda-feira pós confrontos, uma senhora com a idade da minha Avó está sentada nas escadas do metro do Marquês, apenas horas depois de, por cima dela, o redondel ter sido uma espécie de coliseu em Roma, no tempo do Imperador Tito. A senhora vende umas rodelinhas de crochet porque a sua reforma não lhe chega para os medicamentos. O Marquês é simbolicamente um par de bolachas Maria de violência, mas sem a manteiga no meio. Porque estamos tão pobres que nem para isso temos. Nada.

Diria que em Portugal estamos perante uma crise humanitária, que é mais ou menos a miúda feia nas fotografias, para quem toda a gente olha, mas por sabe-se lá que motivo, ninguém comenta.

Durante um par de semanas, invadem-se os espaços destinados a opinadores e especialistas com opiniões especializadas sobre mil casos isolados, sem que ninguém consiga entender que estamos perante uma catástrofe, que o país é violento por si só, é violentado e instrumentalizado por quem o governa e arremessado para com todos os seus cidadãos, dos acabados de nascer aos quase quase a morrer.

Porque a violência não são apenas os confrontos à saída dos jogos de futebol, os gajos do rugby que bebem uns copos e partem o bar ou os maridos que batem nas mulheres. A violência parece ter sido normalizada e transformada numa forma de espetáculo – já sem 'c' – que se espeta, qual lanceta, nos corpos dos cidadãos anestesiados por uma conjuntura abjecta, maquilhada publicamente por Cavaco Silva, durante uma visita a Paris: Portugal é um dos 30 países mais prósperos do mundo. E já agora, que «a comunidade portuguesa não cria problemas, é bem-vinda e trabalhadora».

Diz o Zizék que é necessário um afastamento para se percepcionar a violência de forma objectiva. E alguém ali na televisão, enquanto redijo esta crónica, está muito preocupado com o mau aspecto que estes confrontos produzem nos turistas de visita a Portugal, este país com o ego a rebentar pelas costuras 'lá fora'.

O nosso problema foi sempre este das aparências. Do mau aspecto. Do que fica bem e do que fica mal. 

'Olhe-se ao que se veste, não se olhe ao que se come', já diz o ditado. 

E já agora, Senhor Estrangeiro, o que é que achou? 

trashedia.com