A ópera do plano inclinado

Se algum cantor ficar afónico ou tiver outro contratempo, não há problema. Rui Horta substitui-o na hora. O coreógrafo graceja sobre o seu profundo conhecimento (e encanto) de The Rake’s Progress, ópera de Igor Stravinsky, levada ao palco do Teatro Nacional de São Carlos a partir de hoje e até 6 de Junho, sob a…

The Rake's Progress, com libreto assinado por um dos grandes poetas do século XX, W.H. Auden (com Chester Kallman) é inspirado no conjunto de pinturas A Rake's Progress, de William Hogarth, concebidos dois séculos antes. Em três actos, conta a história de Tom (o tenor Tuomas Katajala), que deixa para trás a noiva, Anne Trulove (Ambur Braid), e inicia um caminho de perdição, influenciado por Nick Shadow (o barítono Luís Rodrigues), nada menos que o Diabo. No epílogo, as personagens relevam que para os espíritos ociosos, o Diabo tem sempre trabalho.

“Interessa-me questionar o moralismo, porque esta obra é muito moralista. Se formos só pela vida a fazer de formiguinha, só o que nos dizem para fazer, a vida não tem sentido nenhum. Agrada-me o hedonismo do Tom, que tem a noção de que isto acaba amanhã e também quero divertir-me. O bom senso diz-nos que o homem é feito de diálogo constante entre emoção e razão”, comenta Horta.

Sobre o seu trabalho em concreto, começa por lembrar que está ali para “servir”, porque “em primeiro lugar vem a música. Estou a defender uma obra musical. A relação com o maestro é fundamental porque ele é uma espécie de advogado do compositor. E pode ser uma relação penosa. Já me aconteceu. E pode ser iluminada, como é a nossa”, diz, sobre a maestrina Joana Carneiro.

No centro do palco está uma rampa com ares de nave espacial. Os elementos são poucos, mas modulares. “O Tom Rakewell, em português é Tomás Desliza Bem. Passa a vida a deslizar e vai deslizar para a perdição dele. Acha que pode passar a vida sem trabalhar e vai acabar mal, obviamente. É um anti-herói, o que me atrai muito: é mulherengo, perdulário, um mandrião. O primeiro objecto que me veio à cabeça é a rampa: se o tipo desliza tenho de criar um plano inclinado. A partir daí decidi que todo o cenário estaria inclinado, e que isso iria afectar a obra”.

Rui Horta não quis fazer uma versão actual – “sexo, drogas e rock and roll ou em Wall Street” – desta ópera que tem na versão de David Hockney uma referência. “Porque sempre haverá diabo, sempre haverá amor eterno e tipos que vão infringir regras e pais déspotas, bordéis, leilões e manicómios. Procuro a essência e a intemporalidade de cada personagem”.

Nota para as palestras do compositor Alexandre Delgado, a decorrer no Salão Nobre do São Carlos. Meia hora antes de cada récita, o musicólogo irá contextualizar The Rake's Progress. A entrada é gratuita para os portadores de bilhete.

cesar.avo@sol.pt