A montanha pariu uma estrela

Não estava previsto, mas João Botelho não gosta de cumprir o guião à risca. Ou melhor, João Botelho dá-se bem com o improviso, mesmo quando apanha todos desprevenidos. Foi esta ‘partida’ que o realizador português pregou em Cabo Verde à equipa que o acompanhou durante umas gravações locais, numa manhã nublada de Abril, ao decidir…

A montanha pariu uma estrela

Para Botelho, 'Joana' – o próximo single de Ora Doci Ora Margos, álbum de estreia da jovem cantora de 22 anos – “é uma canção triste” e ele quer uma “de paixão”. Elida explica-nos depois que 'Joana' conta uma situação biográfica, o momento em que sentiu a desilusão da mãe quando lhe contou que estava grávida, aos 17 anos. Algo relativamente comum entre as adolescentes em Cabo Verde, diz-nos, mas que apanhou de surpresa a progenitora que via na filha uma boa aluna, acabada de entrar para a faculdade e cujo futuro prometia mais do que 'copiar' a ocupação da matriarca: vender legumes e fruta no mercado. “Nunca mais quero viver um dia assim”, revela-nos a cantora, explicando que transformou a história em canção como alerta de gravidezes precoces. 

Já a canção escolhida por Botelho na viagem de duas horas de carro entre a cidade da Praia e o sítio de filmagens, lugar do Matinho – uma montanha colossal, marcada por uma paisagem árida, coberta de pedras e de pó – é sobre o arrepio na espinha que se sente quando nos apaixonamos. “Gosto muito mais desta”, exclama o cineasta, apressando as filmagens de 'Joana' para ainda ter tempo (e luz) para descer até ao verde dos bananais e campos de milho e de courgettes em flor onde quer filmar 'Djam Nkrel Pa Mi'.

“Ali há luz para caraças”, aponta o realizador, instruindo a cantora para se colocar rapidamente debaixo dos raios de sol que trespassam entre os cachos de bananas, já que os improvisos não lidam bem com decisões de última hora e da Praia não veio iluminação artificial para a cena. Mas Botelho não desiste. Para cada contratempo, tem uma solução e Elida colabora com todas as ideias que o cineasta lhe propõe. Mesmo quando fica coberta de lama até aos tornozelos ou a manager se mostra preocupada com as horas – “ela tem concerto hoje à noite, na Praia”. Mas a jovem assegura que ainda há tempo. 

Paciência e uma relação despreocupada com o relógio é um dote que qualquer cabo-verdiano tem. É o caso de Elida que cresceu com a avó paterna no Matinho, um lugar perdido no meio do nada, cujo isolamento obriga os seus habitantes a uma caminhada de mais de uma hora até Pedra Badejo, a cidade na costa leste da ilha de Santiago mais próxima. Ali não há electricidade nem água potável. As únicas distracções de velhos e de crianças (que ainda não atingiram a idade escolar e são entregues ao cuidado dos avós) passam por ouvir o rádio a pilhas, tratar dos porcos, galinhas e cabras, descer o vale profundo à procura da pouca água que brota de um pequeníssimo riacho ou reter as histórias de octogenários, como a vizinha atrevida de 88 anos, que se entusiasma a detalhar a sua abstinência sexual há mais de 20 anos e fala do “tempo dos portugueses, o tempo em que o mundo era mundo”. 

Enquanto isso, a avó Sabina, de 86 anos, está metida com os três bisnetos na minúscula casa de pedra, de apenas uma divisão, e prepara o almoço à sua “humilde moda”, num pequeno fogão a gás de dois bicos. “Gostam de arroz e peixe frito?”, pergunta Elida, para depois concluir: “Claro que gostam. Quando há peixe ou carne, come-se. Quando não há, come-se só arroz”. 

Há muito que a jovem deixou o Matinho, mas continua a ser ali que se sente em casa. Sempre que visita a avó – naquele dia foi ela que fez questão de ir ali filmar e pediu a Botelho para incluir uma cena de família no final do vídeo -, leva a bagagem do carro carregada de mercearias. Mesmo agora em que “já chega tudo lá”, comenta depois na Praia, referindo-se às vendedoras ambulantes que passam com frequência e trazem na cabeça bolachas, caldos Knorr, embalagens de arroz e sumos em pó. 

Hoje é também cada vez mais à distância que Elida vive este universo despojado e parado no tempo. Desde Dezembro, quando lançou Ora Doci Ora Margos, que a música a tem feito viajar pelo mundo. Actualmente está em Paris, mas até Agosto andará ocupada com concertos por cidades como Roterdão, Colónia, Antuérpia. Também tem agendada uma passagem por Portugal, em Julho, no Festival Músicas do Mundo, em Sines, onde actuará ao lado de lendas como o maliano Salif Keïta. “O que está a acontecer é um sonho”, comenta, lamentando a falta de vocabulário em português para explicar melhor o que sente. Em contrapartida demonstra a humildade necessária para não tirar 'os pés do chão' e é com afinco que anda a ter aulas de inglês e francês. Tudo para perpetuar ao máximo o sonho que está a viver. Ou não tivesse a música sido um acaso do destino. 

Uma voz da rádio

Quando engravidou, Elida estava na universidade a estudar Comunicação Multimédia, na ilha do Maio. Uma situação inédita que acabou por a empurrar para fora da faculdade – “nunca no Maio uma rapariga tinha ido às aulas grávida”. Com um filho para sustentar, começou a procurar emprego e um amigo que trabalhava numa rádio ofereceu-se para a ajudar. Ao microfone, Elida transformou-se em Daisy di Maio, conselheira sentimental que conciliava casais, lia declarações em directo e passava músicas que ouvintes apaixonados lhe pediam para dedicar à sua cara-metade. 

Longe da sala de aulas, ocupou ainda o tempo a cantar salmos num grupo coral de igreja e, depois, quando regressou a Santiago, ganhou um concurso com uma canção escrita por si. Passados alguns meses entrou no circuito habitual dos músicos amadores cabo-verdianos: cantava em bares, restaurantes e hotéis, até ser descoberta por Djô da Silva, o produtor que apresentou Cesária Évora ao mundo. “Não queria acreditar: o produtor com quem toda a gente queria trabalhar ia olhar para mim? Mas noite atrás de noite ele estava lá a ouvir-me e acabámos por assinar contrato”. 

O espanto continuou durante a gravação de Ora Doci Ora Margos. Elida propunha a Djô cantar autores como Manuel de Novas, B.Leza ou Eugénio Tavares, mas à medida que o produtor ouvia as suas composições não hesitava em as incluir no álbum. “Acabei por só ter três temas que não são meus”, diz, revelando que hoje escreve todos os dias sobre as suas vivências e situações do quotidiano cabo-verdiano. 

O orgulho no material que criou não a impede, porém, de continuar a achar que ainda está a 'anos luz' dos seus ídolos. E há três que enumera de caras: Katchás, pelo “som de guitarra que inventou”, Ildo Lobo, pela “voz e interpretação incríveis” e Lura, “uma força da natureza inspiradora”. Não fala de Cesária, estranhamos. “Ninguém vai fazer o que ela fez e orgulho-me de ser do mesmo país que ela. Gosto de morna e coladeira, mas é no batuque e no funaná que me sinto bem, que me sinto em casa”. Afinal não está assim tão afastada de Pedra Badejo. Foi lá que se apaixonou por funaná a ouvir o músico local que revolucionou o estilo (Katchás) e foi no rádio a pilhas em casa da avó que ouviu pela primeira vez Ildo Lobo e Lura. 

alexandra.ho@sol.pt